Capítulo 3 - O valor de um soldado

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Costumo acordar sempre com o galo do vizinho, geralmente acabo ficando alguns minutos a mais na cama, mantendo os olhos fechados aguardando algum milagre acontecer enquanto ouço os sons dos arredores. Adoro o mugido distante das vacas chamando seus tratadores, os pássaros no bosque anunciando o novo dia e as primeiras vozes que surgem nos campos.

Desta vez, porém, não chego a ouvir os sons do campo, pois a voz de minha mãe conversando com um homem chama minha atenção, se sobrepondo a qualquer som. Não é o tio Chen, nem nenhum dos vizinhos. Levanto estremecendo ao sentir a madeira fria sob meus pés quentes e vou até a janela. Mamãe está no andar de baixo, parada na porta agitando as mãos enquanto se explica para dois homens com uniformes oficiais; coletores de impostos. Sinto que uma sobrancelha se arqueia quase involuntariamente com preocupação. A casa de chá não lucra muito, mas os dois homens estão dizendo que as taxas subiram, que é preciso pagar mais. Se mamãe pagar mais a casa de chá não conseguirá sobreviver, muito menos depois que os soldados do tio Chen consumirem seus parcos estoques.

Tento me consolar com o pensamento de que os soldados de tio Chen irão pagar pelo que consumirem, mas a maré de incertezas é forte demais. O dinheiro dos soldados será bem vindo, mas com o desfalque dos impostos não será suficiente. Minha mãe e eu não podemos contar com a ajuda de tia Mei ou tio Chen, afinal eles ainda terão que arcar com o casamento de Ru Shi em algum momento. A menos que os rapazes do exército tenham muito dinheiro. É nossa única esperança.

Alguns regimentos são formados por filhos de nobres que tem mais interesse em se manter longe da batalha de verdade. Esses rapazes possuem dinheiro de sobra para sair levando uma boa quantia consigo para gastar em bordéis escusos. Nosso vilarejo é tão afastado que muito provavelmente o regimento do tio Chen deve ter alguns nobres mais interessados em segurança nos lugarejos afastados do que nas frentes de batalha ou metidos diretamente com a segurança do inábil futuro imperador. A esperança flutua em meu peito. Ter nobres aqui até que não deixa de ser uma boa perspectiva para a casa de chá e para Ru Shi, que tanto busca um pretendente.

A pequena chama de esperança cresce e estremeço de apreensão, embora também possa ser só frio. Me abraço para me aquecer, visto uma capa grossa por cima da roupa e desço correndo para ajudar minha mãe com os preparativos do dia, após ela pagar com suas moedas de reserva os impostos que os oficiais cobram. A imagem das moedas tilintando e caindo nas mãos deles jamais sairá de minha cabeça, assim como a sensação de vazio e insegurança que isso deixou.

Mas não há tempo a perder.

Nós nos arrumamos e corremos para a casa de chá. Sei que mamãe já sabe da chegada do tio Chen pela pressa com que separa ervas, cozinha a massa dos bolinhos e ferve a água como se as enchentes estivessem próximas de começar. Temos alguns clientes que chegam para o almoço e ela parece contrariada ao ter que preparar a comida, principalmente quando Ru Shi anuncia que eles pediram exatamente o prato para o qual não temos ingredientes. Mamãe começa a reclamar que nunca deveríamos ter aumentado a oferta da casa, nunca deveríamos ter deixado de servir apenas chá e nos estendido a refeições, ignorando completamente que em outros tempos foi essa variedade que nos salvou.

Tirando o avental manchado de cinzas, eu deixo Ru Shi encarregada de escutar o sermão e caminho até a mesa do simpático casal que mora há poucas casas de distância da gente. Todos se conhecem aqui, não há porque fingir, estamos todos passando necessidade de uma forma ou de outra, estamos sofrendo desde a morte de meu pai, desde a morte do imperador e desde que o príncipe Arjun não assumiu o trono quando deveria. Não há mistérios. Eu conto com sinceridade e muitos pedidos de desculpa que não poderemos oferecer o pedido, mas listo as outras opções ainda disponíveis. O casal parece um pouco desapontado, mas troca de prato rapidamente sem fazer alarde. Estou de volta à cozinha em cinco minutos. Mamãe joga os braços para cima, picotando com exagero um pedaço de massa. Ru Shi me lança um sorriso de agradecimento, pega sua bandeja e volta para as mesas.

Qingshan e o imperadorOnde histórias criam vida. Descubra agora