Cobra
Aniversário é a pior data comemorativa na vida de uma pessoa como eu. Pessoas como Bianca e toda aquela trupe da Ribalta, criadas com muito dinheiro e amor dos pais, almejam completar mais um ano de existência como se fossem receber um prêmio. Aniversários, para mim, são piores do que enterro.
Porque se eu morresse, mesmo que ninguém se importasse em ir ao meu velório, os funcionários da funerária estariam presentes. Eles colocariam o meu caixão na cova e se perguntariam por que aquele pobre moço estaria morrendo sozinho. Alguns até rezariam pela minha alma.
Mas ninguém faz questão de se lembrar do meu aniversário. Porque ninguém quer comemorar o meu nascimento.
Então, quando todas aquelas velas foram acesas e todas as pessoas se reuniram ao redor da estrela da noite para lhe desejar felicidade, me afastei consideravelmente de tudo imaginando que estar ali, mesmo que fosse por Karina, não havia sido uma boa ideia. Furtei uma bebida clandestina dos panacas da academia do Gael e pensei em uma estratégia de sumir de uma maneira que Karina pudesse me achar assim que ela quisesse ir embora. E nada seria melhor do que esperar dando uns socos em algum saco de areia no primeiro andar daquela fábrica.
Eu sou a sombra.
Repeti para mim mesmo enquanto me preparava para socar aquele saco assim que alcancei a academia.
De forma atormentada, eu fujo.
Eu sou a sombra.
Soco.
Corro para escapar.
Dois socos.
― Até você deu um jeito de escapar da machorra?
Parei com as mãos no ar, estralando o pescoço ao ouvir a voz de jade chegando cada vez mais perto, inconfundível, se arrastando como uma serpente, o que combinava perfeitamente comigo.
― Volta por onde veio.
― Você já foi mais sensato, vagabundo.
― Sem essa, Jade. ― Olhei-a por cima do ombro. ― Não tô afim de papo agora.
Soco.
― De papo não. ― As mãos dela deslizaram por minhas costelas, agarrando meu abdômen. ― Mas de outra coisa talvez.
― Os paulistas não são tão bons assim quanto os cariocas?
― Às vezes é preciso assumir que o príncipe cansa a princesa e ela fica com saudade do bandido.
Fechei os olhos, engolindo em seco. Já havia muito tempo que eu estava sozinho. Sem ninguém. Nem mesmo uma qualquer. E com Jade falando daquele jeito manso, com aquele perfume intenso e doce, aquele jeito de me abraçar, não estava facilitando para os meus nervos.
Virei-me bruscamente, segurando seus pulsos. Os olhos dela se arregalaram. Passos trocados foram dados até chegarmos na escada. Já ia empurrá-la para cima quando ela impulsionou o corpo para frente e me beijou.
Eu podia ser a sombra, mas uma sombra bem fraca naquele momento.
A boca dela era tão selvagem quanto a minha. Não havia como negar. Minhas mãos antes em seus pulsos soltaram-se rapidamente para agarrar sua cintura e parte de suas omoplatas. Seu corpo de bailarina dançava em contato com o meu enquanto suas unhas fincavam a parte de trás da minha nuca.
Um lampejo de consciência me lembrou que Jade havia sido categórica meses atrás. Humilhação, choro, gritos. Preferência exacerbada aos preconceitos de sua mãe que estava a alguns metros de nós, curtindo a festa da Bianca lá em cima. Com as mãos firmes em sua cintura, afastei Jade e me retesei.
O suficiente para encarar aqueles dois pares de olhos no alto da escada.
Jade teve um minuto de confusão entre me atacar novamente ou virar-se para ser flagrada pelo quase novo namorado. Mas ela então sorriu. Ela sorriu porque Karina estava ali, nos fitando como se fôssemos a causa do buraco na camada de ozônio, como se alguém deveria se livrar de nós. Alguém que não fosse ela, já que ela desceu as escadas, passou por Jade como um furacão e sumiu pela rua.
Adiantei-me para ir atrás dela, mas meu braço ficou detido. Achei que era Jade. O que foi surpresa encontrar Henrique tentando me parar. Dei um arranco e ele simplesmente cedeu. De forma patética. Ao menos quando eu tentava assustar Pedro ele fazia algo engraçado e não ficava me olhando com aquela expressão destemida de quem vai morrer com honra. Ele só ia morrer mesmo.
― Cobra. ― Jade segurou minha camiseta.
― Qual é a sua, Jade? ― Puxei-a com força.
― Qual é a sua! ― Ela apontou para fora. ― Tá tendo alguma coisa com a machinho?
― O que eu tenho com ela é algo que você não entenderia. Mesmo sendo a Jade boazinha. ― Olhei para Henrique, meio atônito. Frouxo. ― A dama é toda sua, cavalheiro.
E disparei para o lado de fora.
Se fosse antes, talvez eu tivesse ficado e deixado Henrique com um olho roxo. Me metido em alguma confusão com os pai dele e a mãe da Jade. Mas era como se não compensasse. Como se eu precisasse me explicar para Karina mesmo ela sendo só a minha amiga.
Só era modo de dizer.
Ser a minha amiga era algo quase impossível.
E ela conseguia aquilo. Eu é que não havia cumprido o meu papel de amigo. Sumira e a largara sozinha para ficar de amasso com Jade no meio da academia.
Dei uma olhada na varanda da casa dela. Luzes apagadas. QG apagado. Pracinha vazia. Talvez ela estivesse em casa no escuro. Passei as mãos no rosto, pegando o celular. Ligar para ela foi em vão. Chamou até a ligação cair na caixa postal.
― Droga, Karina. ― Olhei em volta. ― Onde você está?
Sua expressão de minutos antes era de aflição. Havia acontecido alguma coisa antes que ela me flagrasse com Jade. Porque me ver beijando Jade não a teria perturbado. Talvez Pedro a estivesse encurralando. Onde um animal acuado se esconderia?
Ela não ia se esconder, pensei.
Ia correr.
E eu ia correr atrás dela.
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Olhos de Cobra (Fanfic Cobrina)
FanficDepois de superar tantas mentiras e descobrir que o seu verdadeiro pai é realmente Gael, Karina decide voltar para casa e colocar uma pedra sobre seu recente passado. Mas perdoar, não significa confiar e tudo isso a leva para longe de um sentimento...