Áudios jamais ouvidos

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Do jeito que aquele imbecil é, ele não deve nem saber o que é uma VM. Virtual Machine. Máquina virtual.

Há alguns anos, Catra teria deixado todas as suas melhores habilidades à disposição. Não teria escondido nada, mostraria-se o mais desejável possível para qualquer patrão que quisesse contratá-la e pagar dinheiro a ela.

"Aprendo rápido, sou proativa, conheço bem o pacote office, sei gramática e matemática, conheço bem o mercado, me esforço, trabalho duro", tantas outras qualidades, algumas que pareciam bastante forçadas e clichês em sua opinião, para tentar se destacar, mas nenhuma mentira.

Tem uma que ela tem deixado de lado, no entanto: o quão longe seus conhecimentos sobre informática realmente vão. Ou melhor, talvez não informática exatamente, mas como driblar a segurança da empresa.

Não é possível acessar contas de email ou mídias sociais pessoais pelos computadores da empresa. As entradas USB são bloqueadas para dispositivos pessoais e dispositivos da empresa não conectam em computadores externos. O email da empresa até pode ser aberto em computadores externos, mas não é possível baixar documento algum deles dessa forma.

Ninguém do departamento de TI nunca pensou em VMs e que continuem sem pensar.

Fora uma ideia que Clementina dera numa reunião há uns dois ou três anos atrás, aproveitando-se da ignorância do seu chefe velhote sobre tecnologia, prometendo-lhe maior segurança contra possíveis futuras investigações, com suas informações mais comprometedoras escondidas em máquinas virtuais hosteadas muito além das fronteiras do Brasil.

Um perfeito imbecil.

Clementina tem como acessar sua VM do computador pessoal, do conforto da sua casa e, desde aquele fatídico dia, tem baixado toneladas e mais toneladas de informação e documentos. Servirão como seguro de vida, um dia.

Hola, papa.

São dois fins de semana após o fim das suas férias. Deixara São Paulo na quinta-feira à noite para pegar um avião até Cascavel, onde dormira num albergue e, na manhã seguinte, pegara uma carona por Blablacar até Catanduvas. Dividira o carro com um motorista sorridente que dizia estar indo passar o fim de semana com a mãe, uma mulher silenciosa de meia-idade e cara de dona-de-casa e um cara grandalhão de expressão tranquila que passara quase a viagem toda olhando pela janela.

Sexta-feira, dia de trabalho e faculdade, a quase mil quilômetros de São Paulo. É claro que prometera ao seu chefe de repor o dia perdido de trabalho no domingo.

– Filha, eu... não estava esperando uma visita sua – o homem, na casa dos 50 anos, aperta as mãos umas contra as outras. Fala num espanhol lento, baixo, doce. Ele não é muito mais alto que a filha, tão magrelo quanto, pele castanha bem mais escura que a sua, cabelos lisos escorridos misturadas a feições que denunciam sua mestiçagem negra e guarani.

Catra vez ou outra lança olhares rápidos por cima do ombro, na direção de onde ela sabe que há uma sala de controle. Já assistira alguns vídeos de visita por jornalistas ao presídio. De acordo com o que leu na Wikipédia certa vez, fora a primeira prisão de segurança máxima do país, destinada, a princípio, a líderes de organizações criminosas.

Ela tem a expressão fechada. Cruza os braços, meio defensiva, evita olhá-lo nos olhos.

– Eu só queria que você me relembrasse as circunstâncias da sua prisão.

Mesmo não o encarando diretamente, ela sabe que o pai relaxa a postura ligeiramente e deixa escapar um sorriso.

– Parece que toda vez que eu vejo seu rosto, é pra você me perguntar sobre minha prisão de novo.

Do Outro Lado - (Catradora / Lumity)Onde histórias criam vida. Descubra agora