Capítulo 42

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Ela sentia que algo estava errado ao seu redor. Sentia em seu cerne que deveria acordar, deveria se erguer e lutar contra o que quer que estivesse atormentando sua tormenta, mas não conseguia. Algo a impedia se arrancar as amarras que a cercava e interromper a tortura que a dilacerava. Sua pele se transformava sobre ela mesma, fervendo e congelando e borbulhando e enrugando. Seu poder era alfinetado e cutucado como se um escultor a fundisse e moldasse em uma forma antiga ao mesmo tempo que inteiramente nova. Ela se contorcia sem se mover e gritava sem falar, mas persistia porque sabia que a única forma de acabar com a dor era superando a dor.

Apegara-se às lembranças de sua primeira transformação, aquela primeira doce tortura onde apenas o espaço a confinava. Tentava se agarrar à sensação de liberdade que conquistou quando pode enfim sair de sua prisão e se lançar aos céus, alimentando um espírito que pertencia tanto à terra quanto ao ar. A segunda não foi tão agradável, mas os momentos seguintes compensavam cada segundo. O poder que conquistara, ainda pouco e imaturo, fora a recompensa pela dor e transformação sem sua alma. E, enfim, sua mente congelava a si mesma ao se lembrar da terceira metamorfose; fora como morrer lentamente e de repente recuperar o fôlego, mas nada, nada do que deveria ser, fora. Sua recompensa lhe foi negada e seu poder enfraquecido, ela deveria ser soberana, forte e poderosa; de certa forma era, mas não como deveria.

Horas, dias e meses se passaram com cada pedaço de si sendo arrancado, rasgado e costurado. Destruído e recriado. Já não se lembrava de seu nome, não se recordava de quem era, apenas lembrava-se de que a tortura continuava e continuava e continuava.

Até que ela acordou.

Araceli não sentia resquício algum da metamorfose que acabara de passar, sentia-se ela mesma como se simplesmente houvesse acordado em uma manhã comum. Ainda estava dentro de seu casulo, aconchegada no calor de seu próprio corpo e das asas que a cercavam. Naquela pequena escuridão ela bocejou e se espreguiçou, sorrindo ao sentir quando as paredes ligeiramente aveludadas estalaram e tremeram; com um pouco mais de força as paredes se alargaram e um espaço de abriu ao seus pés; luz avermelhada perturbou a visão acostumada ao escuro. Devagar e ainda sonolenta, a fada passou um pé de cada vez pela abertura, podendo sentir o chão gelado que lhe enviou um arrepio pelo corpo.

O estranho material do casulo serpenteou ao seu redor, cobrindo o corpo desnudo como um quente e estranho vestido. Em segundos o resto do casulo se separou, libertando o corpo modificado que cambaleou e caiu sobre os braços acolhedores de alguém.

— Boa noite, majestade.

A voz de soprano soou ao pé de seu ouvido, fazendo-a levantar o rosto e observar, confusa, as feições repuxadas pelo vento de Shuarat.

— Você... O que você?...

Ela não teve chance de terminar. O líder de Shiat a fez se equilibrar sobre os próprios pés e fintou algo sobre a cabeça de fios azulados, voltando os olhos em seguida para o rosto reluzente de Araceli.

— Lamento ser o portador de desagradáveis notícias, Araceli, mas não nos resta tempo para maiores explicações.

Shuarat a segurou pelos ombros, forçando-a a se virar e ver o que tinha atrás de si. Fumaça recobria o céu enquanto seu povo lutava pela vida contra uma horda absurda de demônios e estranhas criaturas.

— Quem? — Ela perguntou quando, enfim, sua mente voltou a se situar e os sons da luta e do massacre puderam ser ouvidos sobre a névoa enfeitiçada de sua metamorfose.

— Olso.

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