Capítulo 1

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Os mortos falam, usam a brisa fria e o sussurro das árvores. Constatou Rosalind, deixando a mente divagar enquanto se embalava pelo som do cemitério vivo ao seu redor. Os pés, calçados nas botinhas de salto grosso, amassavam a grama alta e as folhas secas, deixando a trilha enquanto ela seguia o conhecido caminho entre os túmulos do único e gigante cemitério de sua cidade.

Rosalind Marinho, em plenos 18 anos, havia passado oficialmente metade de sua vida desbravando o cemitério onde seu pai havia sido enterrado nove anos antes, após ter sido assassinado em um assalto que dera errado na antiga casa da família. Sua mãe, desde que se casara novamente, não se importava o suficiente com a filha mais velha para buscar saber onde a garota se metia todas as manhãs depois que se formara no último ano escolar. Ela sentia falta da correria da manhã, quando acordava com os gritos de seu padrasto direcionados aos meios-irmãos e quando sua mãe sempre encontrava uma forma de insultar suas roupas e seus sapatos, sabendo serem o ponto fraco da menina. Rose apenas revirava seus olhos, roubando o que quer que estivesse no prato de café da manhã do padrasto e saia da casa, batendo a porta atrás de si.

A verdade era que ela se acostumara aos poucos com a solidão, mesmo que amasse aos irmãos e se desse bem com o homem que sua mãe ousava dizer ser seu pai, ela se sentia sozinha, como se aquele mundo já não fizesse parte do seu mundo, na realidade julgava que ele nunca havia sido. Suspirando, a menina pendeu a cabeça de cabelos castanhos para trás, sentindo os longos e finos fios ondulados bagunçarem com o vento enquanto ela deixou o rosto ser banhado pelo sol. A imagem de suas amigas de escola chegou a sua mente, recordando a menina dos momentos em que não havia se sentido uma pária na própria vida. Um ser invasor de uma sociedade aconchegada demais em valores que não se pareciam com os dela. Uma sociedade formada por pessoas tão vazias que nem mesmo conseguiam olhar para os olhos de uma pessoa e perceber a dor dentro dela. Suas amigas eram incríveis, engraçadas e carismáticas, mas estavam ocupadas demais em suas próprias vidas para perceber que Rose se sentia cada vez mais de fora, como se observasse tudo ao seu redor de uma vitrine; longe, mas ao mesmo tempo inserida naquele mundo. Ela, por um momento, se deixou imaginar como seria viver a vida de sua melhor amiga; imaginou como seria ter um noivo que a amasse com todo coração com uma oportunidade única de ter sucesso em sua carreira em um outro estado, mas ela não julgava que aquele era o destino que queria para si mesma. Ela não queria um marido ou uma vida superficial, apenas queria encontrar seu caminho. Assim, apenas pegou seu bloco de desenhos na bolsa e abriu na última página, onde se encontravam os preparativos da festa de despedida da melhor amiga. Perfeitamente organizados e prontos, cada detalhe arranjado e sem chance de dar errado. Assim era ela, já que não conseguia planejar a própria vida, iria planejar e deixar tudo mais perfeito e sem erro.

A menina finalmente chegou ao túmulo de seu pai, sorrindo ao se sentar ao lado dele e retirar uma flor seca de dentro de seu bloco de desenhos, colocando a mão dentro do pequeno buraco que abrira para deixar as flores de seu pai, eternizadas e guardadas em uma caixinha de metal escondida embaixo do mármore do túmulo. Um de seus irmãos lhe perguntara uma vez o porquê de deixar flores secas para o progenitor no lugar de um buquê. Ela apenas sorriu, colocando a margarida entre as outras diferentes espécies e suspirou, balançando sua cabeça. Bagunçando os cabelos do irmão ao lhe explicar.

—Flores murcham e são jogadas fora, é um desperdício de vida, como papai diria. Mas flores secas duram muito mais e têm uma bela delicadeza mórbida. Ao imortaliza-las, dou a elas um significado para seu sacrifício. A cada flor seca que deixo é mais um dia que papai se fez presente em minha vida.

Ela engoliu em seco, respirando fundo ao repetir a última frase para o vento e o túmulo, sozinha, mas ao mesmo tempo acompanhada da presença do pai, uma memória que se desbota cada vez mais. Rose segurou o pequeno botão de rosa entre seus dedos, a flor seca do dia. Ainda conserva a delicada cor azul mesclada em amarelo, transformando aquele pequeno presente aos mortos como o mais belo sacrifício que levara até aquele dia.

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