Prólogo

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Uma história de amor e morte

Existe uma lenda, esquecida entre as memórias póstumas da humanidade, que relata uma época em que a magia estava entre nós. O ar era perfumado com o cheiro dos feitiços dos bruxos, a flora era inundada pela música proveniente das risadas do Povo da Floresta; eram fadas e ninfas, espíritos e almas, duendes e gigantes, todos vivendo em paz na mais pura convivência harmoniosa. Mas essa lenda, apesar de começar como uma bela história de ninar, termina com sacrifício, dor e maldição... Ou bênção, dependendo ângulo em que se olha.

Natinya ouvia seus pés baterem no chão em um ritmo apressado e indefinido, retumbando e se misturando aos sons das folhas secas e galhos sendo partidos a cada passo da corrida desesperada que ela realizava. Sua respiração a muito havia deixado de existir, mas ela apenas repetia a si mesma que necessitava chegar antes deles ou antes que fosse pega; seu povo e todo o resto do mundo dependia disso.

A fumaça se erguia como nuvem de chuva enquanto o grande vilarejo era queimado e seu povo derramava o sangue para lhe dar a maior quantidade de tempo que pudessem. Os gritos calaram os sons da floresta e os animais se dispersaram para longe, escondendo-se de um inimigo que era corajoso e burro o suficiente para atacar a morada dos Sacerdotes do Templo. Seu exército era formador por bestas caminhando em corpos humanos, cheios da mais pura maldade e ânsia por poder.

Eles haviam atacado durante a calada da noite, esperando encontrar as sentinelas dormindo e os guardas da cidade ociosos enquanto esperavam a volta do amanhecer, mas a Floresta cuidava daquela aldeia, daquele povo que um dia fora respeitado por cada ser vivente em todo o mundo. O vilarejo se chamava Celisye e naquela noite os espíritos das árvores, dos lagos e dos animais acordaram os habitantes com gritos e rugidos, alertando a todos da presença que, mais tarde, os havia reduzido a pó e cinzas, transformando aquela civilização em sombras do passado.

O tecido branco que cobria o corpo da mulher a muito havia deixado de ser cintilante como as estrelas e fluido como as águas do oceano, destruído por terra e sangue, galhos e lâminas. Não pensava na quantidade de tempo em que estava correndo, nem nos gritos que eram ouvidos mesmo no coração da mais densa mata. A sacerdotisa, a mais nova dentre todos da Fortaleza Branca, corria apenas pensando em chegar ao Templo e cumprir o seu próprio destino. Em seus braços, algo embrulhado apressadamente em tecido se mantinha seguro, o grande tesouro que ela e toda a cidade entregaram sua vida para proteger. Não parou mesmo ao chegar às portas do templo, mas registrou o fato de já estarem abertas, como se esperasse por ela.

Natinya passou por salas e antecâmaras, seguindo o caminho que seus pés já conheciam e a magia em seu sangue era mais que submissa. Chegou enfim às portas sagradas, onde os poderes dos deuses antigos se mantinham aprisionados, esperando por seus herdeiros. Ela jamais havia ousado entrar naquele ambiente, apenas o maior dos sacerdotes poderia algum dia entrar no leito, todavia, a jovem apenas respirou fundo e abriu as portas, entrando no ressinto e sendo banhada pela aura de poder... Apenas para sentir uma enorme dor em seu flanco direito e, ao olhar para baixo, ver a lâmina sendo arrancada de si, apenas para a perfurar novamente.

Ela caiu, seu sangue tornando o resto das vestes vermelhas e pegajosas. Uma risada soou ao seu lado enquanto um homem — não, um rei sombrio como as mais negras trevas do mundo — abria o embrulho e retirava o tesouro. Um cristal negro, do tamanho de um coração humano. Seu algoz, o grande líder dos exércitos invasores, passou por ela como se fosse apenas um mero objeto caído em seu caminho, sem perceber que a moça já não mais sangrava e que sua respiração já não mais falhava. O Templo a estava curando, mas ela conhecia o preço a ser pago.

Sua missão ainda não estava finalizada.

Paciente, ela se ajoelhou em seu próprio sangue, usando seus dedos para desenhar estranhos formatos em uma língua esquecida. Esperou, calma como águas paradas, que o homem colocasse o cristal sobre o altar feito de uma estranha rocha, separado do chão por degraus e mais degraus jamais pisados por pés humanos. Assim que o encaixe se finalizou, uma onda de poder jogou o homem para longe e fez todo o ar ao redor deles tremeluzir. Natinya, então, abraçou seu destino, gritando as mais poderosas palavras de seu povo.

Deuses nascidos do brilho das estrelas

Emergidos do mais negro abismo das águas

Ouça o grito de seu povo e o clamor de sua serva

Um Mau se ergue sobre nós e escraviza aos seus filhos

Derramem nessa terra seu furor e joguem sobre nós a sua ira

Mas lembrem de seus herdeiros e eleitos

Sobre os nossos inimigos deixem a morte

Mas sobre os que clamam, salvação

Deem aos mortos, justiça

Aos vivos, armas

E ao futuro, uma chance

E em troca o preço será sobrado

Sobre essa serva e sua facção.

O Templo queimou. 

Preço de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora