CAPÍTULO 35

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Charlotte acordou sentindo cheiro de bacon. Ela olhou ao lado e viu que estava sozinha no quarto. A fome bateu e ela se levantou. Depois de ir ao banheiro, tomar banho e se vestir, ela foi a cozinha. Peter era o responsável pelo cheiro de comida, mas a visão dele sem camisa, com os cabelos amarrados na nuca, despertou outro tipo de fome nela.
Ele se virou e sorriu, mas seus olhos estavam frios.
"Bom dia, Charlotte. Espero que coma o que eu preparei dessa vez."
Ele a estava lembrando do caldo de carne de alce que ele tinha preparado no chalé de seu tio.
"Se não tivéssemos sido surpreendidos, eu iria comer, você sabe disso." Ela disse ao se sentar numa das banquetas.
Ele assentiu com a cabeça e colocou um prato e uma xícara com café a frente dela. Estava cheio, mas ela realmente estava faminta.
"Como Simple convenceu meu tio a ceder a casa, o helicóptero e a mentir?"
Peter balançou a cabeça, ele estava sério, Charlotte estava sentindo que alguma coisa o incomodava.
"Ele não disse. Mas se eu fosse apostar, diria que teria algo a ver com o fato do seu tio ser gay."
Charlotte quase engasgou com o café.
"Ele não faria isso!"
Peter sorriu, o seu sorriso cruel.
"Ele é uma criança. Ainda que seja muito inteligente, falta a ele o amadurecimento para entender os limites e as consequências de suas ações."
Ela considerou as palavras dele. Vengeance tinha dito algo parecido sobre Simple.
"E alguém contou ao pai dele?"
Peter riu.
"Não. E não adiantaria contar. Valiant não pensa como a maioria das pessoas, ele ficaria ainda mais orgulhoso do que já é. Tammy entenderia, talvez o colocaria de castigo, mas não passaria disso."
Charlotte entendeu que ele não via o problema como ela. Até ele parecia admirado pelo o que Simple fez.
"Mas você entende que ele errou, né? Não por nos colocar em risco, mas por fazer algo tão baixo como chantagear uma pessoa, ainda mais com uma questão tão delicada."
Peter se sentou e encheu a boca de comida, mastigou, tudo olhando para ela.
"Meu pai o castigou. Logo que ficou sabendo. Ele fez James e Joe confiscarem todo o dinheiro que Simple tinha no banco e doarem anonimamente para uma instituição que ajuda pessoas com dependência química."
"Dinheiro? Como uma criança como ele pode ter dinheiro?" Charlotte falou enquanto, mais uma vez, se via admirada com Vengeance. Ele era demais!
"Desde muito cedo, Simple junta dinheiro. Ele sempre pede alguma coisa em troca de favores, meu pai mesmo, disse que já pagou a ele muito dinheiro."
Charlotte estava abismada.
"Eu, porém, acredito que ele deve ter outra conta. Meu pai também, mas era pra que ele entendesse que há limites, mesmo quando se quer fazer o bem."
Charlotte sorriu.
"Sabe, aqui não é o lugar parado que eu pensava que era. Amy ama viver aqui, e agora eu entendo um pouco o porquê."
Ele se levantou e começou a lavar o prato.
"Mas não seria suficiente pra você, não é?" A voz dele tinha um toque de amargura. Ele estava de costas. Charlotte entendeu que era aquilo que estava o incomodando.
"Não, Peter, não seria. Eu cresci numa fazenda, e ia na cidade umas duas ou três vezes por ano. Eu odiava! Eu amo minha família, tenho saudade deles, mas Nova York sempre foi o meu sonho. Não me peça pra ficarmos aqui, Peter, por favor."
Ele se virou. Seus olhos estavam vermelhos, e Charlotte sentiu os seus arderem quando uma lágrima rolou pelas feições bonitas dele.
"Eu não estou pedindo. Eu não voltarei atrás, mas meu pai não vai com a gente. E isso está me matando."
Ele amava o pai. Até ela ficou um pouco triste ao saber que Vengeance não ia morar com eles. Mas eles poderiam se falar, e visitar a Reserva sempre que desse.
"Vocês podem se falar por telefone todo o dia. E podemos vir sempre aqui. Você vai ver Peter, não vai ser tão ruim quanto está parecendo."
Ela o abraçou por trás. Ele era quente e cheirava bem. Charlotte começou a beijar as costas fortes dele.
"E vamos falar o quê? Não sei se você percebeu, mas meu pai não é uma pessoa muito falante." A voz dele estava seca, diferente do tom carinhoso que ele sempre falava com ela.
"E vamos vir sempre? E quando você terá tempo? Pelo que vi, você estava de férias, e mesmo assim passava todo o tempo que podia estudando. Quando estiver tendo aulas e trabalhando vai ter tempo pra vir pra cá? E eu farei o que em Nova York? Carregar seus livros? Fazer a sua comida, limpar o apartamento?"
Eram as questões práticas que eles deviam ter discutido e deixaram pra lá, Charlotte pensou. Mas ela sabia por que tinham deixado de falar nisso. Era complicado e chato tocar nisso.
Mas agora estavam ali no meio deles e era a hora de resolverem. Mas o que ela poderia dizer?
"Peter..." Ele se virou. Ela tocou o rosto dele, enxugou a lágrima que tinha rolado e o abraçou. Ele, porém, continuou com os braços para baixo, sem retribuir o abraço.
"Eu vou, Charlie. Mas não sei por quanto tempo. Acho que podemos dar um jeito, eu vivi entre os humanos quase toda a minha vida. Mas ficar longe do meu pai..."
Ele se afastou, ficou ante a janela. Inspirou o ar que vinha de fora de olhos fechados.
"Eu não sei explicar essa dependência que eu tenho dele. Deve ser algo em nossos genes, eu sei lá! Nenhum Nova Espécie da segunda geração teve de ficar longe dos pais, e nenhum deles também é órfão. Mas ficar longe dele me machucou muito da primeira vez. Se não fosse Silent, eu teria ficado louco. E eu entendo que ele tem que ficar."
Charlotte queria poder dizer alguma coisa, mas ela não tinha nem idéia de como ele se sentia. Ela amava os pais, mas bastava falar com a mãe por telefone, saber como eles estavam que, por mais que sentisse saudade, não a fazia querer largar tudo e voltar para a fazenda.
"Eu preciso sair." Ele disse indo para a porta.
"Eu não sei como chegar na casa de Amy." Era verdade. As casas ficavam um pouco longe umas das outras. Como eles corriam, não devia parecer longe, mas ela se perderia.
"Alguém virá te levar." Ele disse e saiu.
Charlotte ficou parada no meio da sala. Que porra! Que merda! Como eles passaram da noite quente de sexo que tiveram para ela ter de esperar alguém levá-la até a casa de Amy?
Não demorou muito e um jipe parou na porta. Charlotte queria gritar de raiva e frustração, mas ela estava oca, fria, sem reação.
A porta se abriu e Moon entrou.
"Foi aqui que pediram um táxi?" Ele disse e sorriu. Ele tinha cabelos e olhos escuros, era muito bonito como todos. Havia, porém, um toque de  bondade nele, uma calma que a fez sorrir e balançar a cabeça.
"Então, vamos." Ele abriu a porta e a esperou passar.
Mas na varanda, ela parou e se sentou numa das cadeiras.
Ele se sentou na outra cadeira sem dizer nada e esperou.
"Moon, você é canino, não é?"
Ele sorriu.
"O que me denunciou, meu charme?"
Ela riu.
"Você acha ser canino te faz ser mais apegado às pessoas, do mesmo jeito que os cachorros são?"
Meu Deus! E se ele se ofendesse?
Ele ficou sério.
"Vengeance não vai com vocês, não é? E Hunter está querendo que você fique aqui, mas você tem sua vida em Nova York. Você está com medo dos genes caninos dele não permitirem que ele viva com você lá?"
Ela baixou os olhos.
"Você conheceu minha companheira? Joy é uma terapeuta incrível. Ela tinha uma carreira consolidada, era respeitada e feliz com sua vida profissional. Mas aí ela teve que vir para a Reserva, pois eu tinha sido atingido por uma bala que me deixou louco. Resumindo, ela me salvou e aceitou deixar tudo e viver comigo. Já viu minha filhote, a Lunna?"
Charlotte não se lembrava de ter visto. Ela sabia que agora, eles também tinham meninas entre os filhotes, mas nunca tinha visto uma.
"Aqui está ela." Ele mostrou a foto da criança no celular. Era uma réplica feminina dele, linda!
"Ela é linda!" Charlotte disse.
"Eu sempre vou me perguntar se Joy realmente continua feliz por estar aqui e não lá fora, com todas as coisas que aqui não tem. Mas ela me diz que é feliz por que eu e Lunna somos o lar dela, que somos mais importantes que sua carreira, diversões, facilidades ou qualquer outra coisa que há lá fora. Sei que você está abrindo seu caminho no mundo, que você precisa se provar capaz de conseguir tudo o que você se propõe a fazer ou ter. Hunter também sabe disso e quer te proporcionar isso. Mas ele não teve tempo para conviver com Vengeance até ver o pé no saco que ele é."
Ela riu. Moon era sábio e divertido.
"O vínculo de pai e filho é diferente pra nós. Se você for comparar, entre os cães, os machos não são tão ligados aos filhotes como as fêmeas, então os genes caninos não têm muito a ver com o que acontece entre V.  e Hunter.
Todos os filhotes, sem excessão, por mais que sejam ligados às mães, são dependentes dos pais. Não me pergunte por que, eu não sei. Mas tanto Florest, quanto Kismet, se negaram a ir para a universidade. Salvation ficou doente quando Fury teve que passar um mês numa missão da força tarefa."
Charlotte se levantou. Ela pensou que Moon ajudaria com sua fala mansa e seus olhos doces, mas o que aconteceu foi que ela agora estava mais confusa que nunca.

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