CAPÍTULO 46

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— Minha criança — uma voz aveludada me chamou. Dedos frios e finos acariciavam minha cabeça de forma acolhedora.

A primeira coisa que senti foi o nada.
Não existia nada para ser sentido.
Meu coração não batia, minha pele não emanava calor e meu corpo não doía. Em nenhum dos lugares que antes eu lembrava que a dor fora insuportável.
Lentamente movi minhas pálpebras e vislumbrei apenas luz e brilho.

— O que aconteceu? — perguntei e as palavras flutuaram ao meu redor, como pequenas estrelas vermelhas.

— Você conseguiu, criança, você destruiu a rainha do caos. — A voz dela cintilava em tons de prata.

Então decidi levantar minha cabeça.
Percebi que estava leve, que meus músculos não se tencionavam para mover meu corpo.
Olhei para cima e deparei com olhos completamente prateados, como prata líquida derramada em íris cheias de espirais e pupilas brancas e cintilantes como cristais.
O cheiro de noite, tempestades de verão e orquídeas me invadiu.
Eu me lembrava daquele cheiro. O cheiro de uma outra vida, uma outra chance.
Eu conhecia aquela mulher, mas sua aparência estava diferente, a mortalidade em seus traços tinha sido substituída por uma beleza celestial e poderosa.

— Grande deusa das noites — murmurei em reconhecimento, fazendo uma longa reverência aos seus pés.

Ela deslizou as mãos geladas pelos meus braços e segurou minhas mãos com delicadeza, impulsionando meu corpo para cima. Me obrigando a me levantar e olhar em seus olhos exóticos.

— Não quero reverências, títulos ou privilégios aqui, Héstia. Estamos na outra dimensão, onde apenas os dignos chegam, me veja como a mãe dessa família.

Então a deusa sorriu e estrelas iluminaram tudo a nossa volta. Seu próprio sorriso era puro poder líquido e concentrado.

— Outra...outra dimensão? — perguntei sentindo o mundo girar levemente ao meu redor e pela primeira vez olhei em volta, reconhecendo o lugar.

Tudo era claro e brilhante. Nuvens grandes e fofas rodopiavam ao nosso redor e espirais de vento moldavam suas formas diversas.
O chão era gelado e liso, como mármore, com várias urnas e espirais desenhadas profundamente em sua extensão, marcando um caminho largo até um gigantesco Portão de prata que se erguia sob nossas cabeças.
Tão grande que seu topo não passava de uma sombra na altitude.

— Você morreu, Héstia. Seu corpo mortal cumpriu a missão para qual foi designado — a deusa explicou com a voz suave e baixa.

Então eu senti.
Senti a falta das sensações, a falta do meu peso, do meu calor. Senti falta de Diunye.

Diunye...

— Quando seu corpo deixou de ser o receptáculo de seus espíritos, finalmente ela ficou livre para voltar, assumindo sua verdadeira forma. — Ela indicou os portões prateados além de nós. — Ela está te esperando do outro lado.

— Meus filhos, minha pequena Aurora — solucei sentindo um aperto, o mais próximo da dor que eu podia sentir, no lugar em que antes meu coração ficava.

— Vão ficar bem, estão cercados de pessoas que os amam. E você ainda pode vê-los em algumas ocasiões. Você ganhou esse direito.

Sorrindo Hécate levou as mãos às minhas costas e me guiou até os Portões que se abriram silenciosamente.
Quando dei os primeiros passos percebi que um leve e esvoaçante vestido branco e cintilante contornava meu corpo, quase idêntico ao vestido que Lucy usava em uma de suas aparições.
O Portão me chamava, sussurrando uma canção antiga para mim, acariciando meu espírito e me instigando a atravessá-lo.
Então eu atravessei.
Senti como se eu estivesse me estilhaçando, ruindo pedaço por pedaço, virando pó e sendo carregada pelo vento que ricocheteava de forma insistente e poderosa.
Eu desmoronei por completo. Me desfiz.
Então uma força antiga e que estalava poder me reconstruiu, pedço por pedaço, ferida por ferida, me atingindo como uma rocha de gelo, fazendo meu corpo queimar e minha cabeça latejar em poder. 

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