Capítulo 36

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Nota do autor: Reli o início de Itapoga e percebi que nada está igual. Bom, gosto mais do jeito que é agora, espero que vocês também. Boa leitura!

"Eu faço samba e amor até mais tarde, e tenho muito sono de manhã

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"Eu faço samba e amor até mais tarde, e tenho muito sono de manhã." A voz de Pedro era um sussurro doce e a onda sonora era uma abelhinha entorpecida nesse mel. "Escuto a correria da cidade, que arde e apressa o dia de amanhã." Passou para um murmúrio e Daniel ouvia apenas a melodia em si ao invés da cantoria afinada do outro garoto.

Sentia a música reverberar em seu corpo e os lábios de Pedro sibilando contra a pele de sua barriga, onde parte de seu rosto residia em tranquilidade. Estava num estado extracorpóreo de conforto, como se o tempo houvesse estagnado e a paz mundial fosse atingida. Pensou que, se o mundo inteiro tivesse uma noite com o brasileiro, quem sabe alcançaria o sentimento.

"De madrugada, a gente ainda se ama e a fábrica começa a buzinar. O trânsito contorna a nossa cama, reclama do nosso eterno espreguiçar." Os dedos do menino dourado preguiçosamente tocavam a extensão de pele que conseguia alcançar.

Lembraria daquele momento para o resto de sua vida e mandava suas condolências ao Daniel de um universo paralelo em que nunca conheceu Pedro. Este estava fadado a infelicidade por nunca ter escutado as ritmadas sílabas de um sucesso velho na companhia dele após algumas horas de desejo carnal. Nem o melhor entorpecente poderia substituir a sensação do que viveu e rezava para nunca esquecer de cada detalhe.

Era um toca-discos velho no canto do quarto que girava infinitamente as melhores canções de Chico Buarque e Pedro conhecia todas as letras de cor. Observava-o em admiração e mexeu nos fios rebeldes do cabelo dele com a mão que tinha livre, pois a outra tinha um baseado entre os dedos e, de tempos em tempos, colocava-o junto aos lábios para um trago lento.

Em qualquer outra situação, sua posição com parte das costas escoradas na cabeceira e a outra contra o colchão seria extremamente doída, mas nada podia abalar o estado psíquico do protagonista desta narrativa - nem mesmo o brasileiro, que não conseguia permanecer quieto por longos períodos e acabou por levantar, deixando Dan a sentir somente o calor da fumaça em seus pulmões.

Nem a partida de futebol nem o loiro foram capazes de acabar com a energia dele. Se os hormônios do rapaz não tivessem embalados por duas garrafas de espumante e a erva que segurava, estaria preocupado. Contudo, tudo o que seu cérebro assimilava era a música calma e o incansável menino explorando os livros de uma estante alta que ali tinha. Vestia apenas o lindo corpo que Deus lhe deu e Daniel repentinamente sentiu falta de tocá-lo. Quis protestar a sua saída, mas distraiu-se com a lua banhando-o de luz e tornando-o uma linda pintura renascentista.

"Nunca dormes?" Pedro levantou o olhar para ouvir sua queixa e sorriu em resposta.

"Ocasionalmente." Deu de ombros e mostrou o título que tinha em mãos. Os miseráveis. "Tenho a meta de consumir o máximo de arte possível antes que Saturno dê-me a badalada final. Se dormisse, teria triplicado a duração de leitura desse clássico francês por exemplo, que possui cerca de mil e quinhentas páginas." Virou-se para colocá-lo de volta na prateleira.

"Tenho certeza que um Pedro de outro universo pode ler enquanto volta para a cama e, durante o sono, compartilha o conhecimento contigo." Tentou persuadi-lo e foi bem sucedido visto que o outro deu risada de sandice e não relutou em largar o peso do seu lado no colchão.

Daniel repousou o cigarro no cinzeiro e desceu de sua posição desconfortável escorado na cabeceira para deitar a cabeça na mesma altura que seu amante, os dois mirando-se. Tocou sua bochecha e seus dedos foram tomados pela sensação engraçada que a barba por fazer causava no tato. As vezes, o brasileiro parecia esse ser inalcançável, como se estivesse alto no monte Olimpo e sua figura mortal fosse apenas uma miragem para ser idolatrada; mas era diferente quando ele permitia olhá-lo além do ordinário.

Abaixo de seu olho, tinha uma pequena cicatriz, a primeira imperfeição que via no rapaz desde que primeiro o avistara, e aquele pequeno fato o deixou tão feliz. Era uma felicidade boba de saber que ele não era perfeito afinal de contas.

"Qual a história desta marca?" Seu polegar agora estava sobre a textura do ferimento antigo, porém, os olhos não deixavam as lindas íris âmbar por nada - com medo de serem a porta para sua alma e, ao deixá-las, fechariam para sempre.

"Acredito que saiba da história desta cicatriz, pois leu o texto sobre a briga de bar, quando Joaquim fugiu e deixou a baderna acontecer. Ele estava sempre nesse botequim beira-mar a encher-se de gim e, após escutar uma de suas infinitas histórias, passei a acompanhá-lo na bebida. Embriagado, aborreci um velhote com um canivete e ganhei este presente." O loiro impressionou-se com a história, pois não sabia da veracidade da redação. "Pamela logo apareceu e convenceu o homem a poupar-me o olho." O humor do receptor do diálogo escureceu a simples menção da ex-namorada.

"Alivia-me ter ciência de que ela não foi psicótica durante todos os anos que estiveram juntos, e fazê-lo ingerir substâncias ilícitas não era um de seus hábitos." Suas palavras ácidas eram verdadeiras, mas Dan se surpreendeu de tê-las dito sem cerimônia.

"Ela não é má como pensas." Desviou os olhos para colocar a mecha solta de sua franja atrás da orelha, seu rosto imparcial. "Também não sou um santo, fui capaz de destruí-la e salvá-la diversas vezes. Nosso relacionamento foi repleto de sentimentos recíprocos, fossem eles bons ou ruins." Escolheu cuidadosamente o que ia compartilhar. "Quando te conheci, relembrei a felicidade da paixão, aquela que inspira lindas canções, e percebi que não encontraríamos isto um no outro novamente. Nosso amor foi um longo cruzeiro que naufragou e não quisemos acreditar quando atingimos o fundo do mar."

Dan permaneceu calado, levando alguns instantes para processar toda a honestidade que havia sido exposto. Este era realmente Pedro, nada perfeito como tinha idealizado em sua mente. Saber que eles se prejudicaram igualmente pesava seu estômago em um medo irracional de um futuro que talvez nunca iria existir. Fundo em seu pânico, cogitou que provavelmente estava sentindo o fenômeno da bad trip, querendo sumir dali o mais rápido possível. E, a partir disso, não conseguiu conter a ansiedade de fazê-lo tremer em incerteza e perder o fôlego, enraivecendo-se por ter um péssimo autocontrole e causar preocupação naquele que ainda o encarava.

Quis ofender o universo por colocar alguém tão intuitivo em seu caminho, que lia suas expressões de forma quase telepática e, consequentemente, mostrava leves traços de dor ao ver Dan em pânico após finalmente ser transparente sobre sua vida, mesmo que este fosse efeito da má qualidade do que havia fumado.

Apesar de tudo, o brasileiro envolveu-o nos braços, sua orelha encostada no osso esterno a ouvir o ritmo constante de seu coração. Num embalo quente e nas calmas notas de samba, sua respiração eventualmente se normalizou e ele pode focar no cheiro de sândalo e mar mais uma vez invadindo suas narinas.

Queria se desculpar pela reação, mas, ao abrir a boca, notou que nenhum som saiu. Talvez o universo quisesse que ele não cometesse nenhuma besteira dizendo palavras impensadas em um reflexo de desespero. Optou por permanecer calado então, apenas escutando o murmúrio dele acompanhando a canção ao fundo - mais uma das que lembrava de cor.

Aquela era a segunda vez em menos de um dia que sentia-se a beira do colapso e Daniel rezou ao vento que Pedro sempre estivesse por perto para acalmá-lo, pois sempre sabia o que fazer.

Nota do autor: Queria dizer que amei escrever esse capítulo :) Quero saber de vocês: o que acharam da revelação do Pedro e da reação do Dan? Vai ter mais revelação no próximo capítulo e, se vocês lerem com cuidado, vão conseguir adivinhar sobre o que é. Não esqueçam de VOTAR e COMENTAR 

Itapoga (Romance gay)Onde histórias criam vida. Descubra agora