O pesadelo não me impediu de falar com Zylia na manhã seguinte. Ela estava um pouco mais cansada que o habitual, percebi. Com as costas curvadas e a cabeça distante, ela me disse que eu começaria assim que todo o grupo voltasse à ativa e que isso provavelmente não demoraria muito. Ela não parecia sentir tanta confiança em mim, ainda mais depois que contamos sobre Ayllier.
Eu não a culpava por isso. Zylia tinha razão, afinal.
E mais duas semanas se passaram. Hale e eu fomos bem eficazes em distrair a cabeça. Me aproximei mais de Abigail, Hallie e Emma e, quando não estava com meu irmão, estava com elas. Exceto durante a noite, quando todos dormiam, eu ia até o deck de madeira, e ficava até não suportar mais.
Na noite anterior ao sábado, eu e Hale fizemos um bolo comemorando nossa mudança definitiva para Álix. Tínhamos chegado a um acordo concreto de que ficar ali era uma ótima opção. Além de termos segurança, era uma grande oportunidade. Fiz uma promessa para mim mesma de que minha vida dali pra frente mudaria.
Nossas expectativas eram grandes, mas acabou saindo um desastre. Esquecemos o bolo no forno e faltou farinha. Não sei o que exatamente saiu. Contudo enchemos de glacê e recheamos com doce de morango.
— Isso tá horrível — eu ri.
— Tá meio... torto — Hale acompanhou minha risada. — Mesmo assim, é bolo. Vamos ver se está tão ruim assim.
Meu irmão não teve dó nas fatias. Levei um pedaço na boca e apreciei o sabor. A massa não estava lá a melhor coisa, mas o doce de morango ficou perfeito e disfarçou o gosto estranho do bolo.
— Não está tão ruim — falei.
— É, eu acho que não.
— Zylia deve ganhar de lavada da gente.
Observei um brilho diferente surgiu nos olhos do meu irmão quando ele ouviu minhas palavras e abriu um sorriso bobo.
— Com certeza.
Levantei as sobrancelhas, abrindo um sorrisinho sem vergonha.
— Está apaixonado, huh? — provoquei, cutucando-o.
Hale me olhou da forma mais indignada possível.
— O quê? Não.
— Consigo ver que você gosta dela.
Ele riu, nervoso.
— Eu não gosto dela.
— Tá — eu ri. — Seja sincero. Você tem, ao menos, uma quedinha por ela.
Hale puxou o ar com força, deixando o sorriso sumir de seu rosto enquanto encarava o chão. Mesmo que não tivesse sua resposta, eu já estava chocada. Nunca passou por minha cabeça que fosse possível ver Hale apaixonado.
Ele olhou para cima com cara de tédio.
— Eu odeio você.
Eu gargalhei.
— Sabia — cantarolei.
— Como você sabia?
Revirei os olhos, ainda sorrindo.
— Está óbvio. Eu conheço você, apesar de que nunca te vi apaixonado. Mas dá pra saber que você gosta dela, principalmente porque depois de quase dezenove anos você ainda lembra de coisas pessoais que ela fazia — eu o cutuquei com o braço, brincando. — Não esconda isso de mim.
Ele cedeu.
— É. Talvez eu goste dela.
— Quanto?
Hale abriu um sorrisinho bobo de novo.
— Não diria bastante, mas eu gostava dela há vários anos. Com o tempo, pensei ter superado a pequena admiração, porém ao vê-la...
— Você não resistiu.
O movimento do meu irmão ao passar o dedo no glacê e jogar na minha cara foi rápido até demais. Fui pega tão desprevenida que precisei de alguns segundos para raciocinar.
— O que-
Ele gargalhou, então devolvi o movimento, sujando seu nariz e sua bochecha. Foi a vez dele de me olhar indignado.
— Sua sapequinha.
Eu ri quando ele se aproximou rápido, fazendo cócegas em mim. Eu mal podia respirar, mas ria alto e livre. Não precisei ter medo de rir pela primeira vez em muito tempo e eu adorei a sensação. Por um minuto, desejei nunca parar. Porém me faltou ar e eu engasguei, então Hale foi obrigado a parar.
— Você está bem? — perguntou.
Eu ri baixinho.
— Estou.
Hale estava agachado na minha frente, e reparei onde estávamos. Reparei que eu podia ter uma vida feliz. Que aquela, talvez, era minha primeira oportunidade de ser assim e que eu não deveria desperdiçar.
Meu irmão abriu um sorriso.
— Eu tenho uma coisa para você — disse.
Hale enfiou a mão no bolso, puxando um cordão dourado, repleto de pedras preciosas esverdeadas. No centro, um símbolo que eu não entendia era moldado com pedras caras, e reluzia diante dos meus olhos, quase me cegando pelo reflexo.
— Foi de uma pessoa importante para mim. Uma amiga que fiz nos campos de escravidão.
Sem preceitos, eu virei e deixei que Hale colocasse o cordão ao redor do meu pescoço. O metal gelado fez cócegas quando roçou contra minha pele.
Por um momento em choque, eu quis chorar. Então puxei Hale para um abraço; algo que eu fazia quando sentia extrema necessidade. Até durante a noite, quando ele me ouvia. Eu só recebi abraços dele durante minha vida toda, e não pretendia parar.
Nos afastamos um tempo depois, e ele me ajudou a levantar.
Comprimi os lábios, me recostando no balcão enquanto o observava. Engoli antes de dizer:
— Eu falei com Aaden esses dias.
— Ah é? Sobre o que? — Hale voltou a comer seu bolo.
Eu dispensei meu pedaço.
— Sobre o treinamento.
Observei meu irmão cortar mais um pedaço do bolo. Ele olhou para mim, surpreso.
— Você aceitou?
— Acho que você estava certo. E, além do mais, isso vai me ajudar a distrair minha cabeça.
— Fez uma boa escolha, minha irmã.
Sorri.
— Espero que sim. — Dei uma pausa. — Ele disse que há possibilidade de irmos para a cidade essa semana. Bem, na verdade, ele disse dez dias, mas acho que não demora muito mais que isso.
Hale franziu o cenho.
— Há quanto tempo você falou com ele?
Dei de ombros.
— Mês passado. — Faziam algumas semanas. O mês de Holddan tem seus dias curtos. Era seguido de Ramá e composto por apenas dezoito dias; era o mais rápido de todos do ano.
O prazo que Aaden me deu não aconteceu, de fato, mas o tempo rodava rápido, como se estivesse com pressa.
Não via Portos desde aquele dia. Nem Eliya. Nem Zylia. Muito menos Renoward, que deve ter tomado chá de sumiço. Mas não pude deixar de pensar na conversa que tive com Aaden e de como me senti bem ao lado dele.
— Vem. Vamos levar esse bolo para o pessoal.
Nós levamos o bolo e reencontramos a Corte Privada de Álix. O dia foi tão bom que mal reparei quando a noite chegou. Vê-los novamente foi divertido.
E, enquanto estávamos sentados conversando, reparei que um certo par de olhos verdes não saia de cima de mim.
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Arthora | A Queda de Um Império
Fantasy[Obra concluída ✔] Há 980 anos, Arthora, um dos Sete principais Reinos, foi escravizado. Gaëlle Provence é descendente dos escravos, e esteve nos campos de escravidão quando era uma bebê, até que seu irmão, Hale Provence, fugiu com ela para evitar s...