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Eu não entendia o sentimento bruto que me preencheu assim que entramos na casa. Assim que ele se fez presente. Era bom. Me lembrava o cheiro de profiteroles assando enquanto eu observava a chuva cair do lado de fora de casa. Me fazia querer sorrir e chorar. Parecia um cutucar feroz que subia até a alma, mas acalentava o ardor da ferida.

Ele olhou ao redor.

— Acho que temos um longo trabalho a fazer — comentou.

Não sabia dizer se isso era uma coisa boa. Eu apenas concordei com a cabeça.

Ele olhou para mim.

— Vamos começar?

Concordei de novo.

E em alguns minutos, começamos a tirar os móveis quebrados. Uma mesa estilhaçada, uma cadeira quebrada, um sofá rasgado e sujo.

Minha relação com ele sempre foi algo duvidoso. Já tinha afirmado que ele não existia. Não só uma, mas diversas vezes. Já havia duvidado de muita coisa, mas estar ali era prova que desistir não era uma opção para ele.

Eu adentrei na casa de novo, ainda observando o local triste e quebrado. Parei, de súbito, lembrando-me de quando Hale me contava sobre ele.

Havia pólvora preta manchando o chão, mas não era tão terrível quanto a grande mancha preta do banheiro.

Lá longe, eu comecei a ouvir uma voz. Parecia gritar, mas estava longe demais para discernir o que dizia, então continuei a fazer o que estava fazendo. Empurrei uma poltrona empoeirada, porém conservada, para fora da casa. Depois comecei a retirar as cadeiras quebradas.

Então a voz se aproximou. E ficou cada vez mais alto e mais alto. Eu a reconheci. Cresci com ela aos pés dos meus ouvidos, sempre estridente. Gritava comigo, me dizia coisas horríveis. Era bruto e severo e não aceitou minha vida.

A imagem do chicote descendo em direção as costas do meu irmão na sala de estar da mansão me veio à mente. Eu gritava, mas não podia me mexer. O sangue respingava, como a tinta vermelha e seca sob meus pés, que infincou e grudou no chão de madeira. Assim como o sangue que o tapete de pele da sala cobria e ocultava dos visitantes frios.

A imagem piscou e mudou para os olhos duros daquele que se dizia cuidador de mim.

A madeira sob meus pés estalou e quebrou e eu caí na água. Não sei de onde, não sei por quê, mas tinha água. E ela me sufocava, me trazia para baixo, queria me matar e afogar como tantas vezes. Eu tentei alcançar algo, mas não tinha. Não havia espaço, não havia lugar. Era grossa e espessa e queria entrar pelo meu nariz, queria cobrir meus olhos, queria rasgar minha garganta, amassar meus órgãos, estilhaçar minhas entranhas. Queria corroer meus pulmões tão saldáveis. Tão inteiramente loucos para correr e puxar o ar puro.

O ar que eu não tinha e era impossível puxar de volta.

— Gaëlle, olhe para mim — ouvi a voz do Imperador, e por um segundo encontrei seus olhos. Olhos tão bondosos e cheios de vida; olhos de carinho e amor. Diferente daqueles que vi durante a infância.

Mas tive que desviar porque lutar estava difícil e água ameaçava cobrir meus olhos.

— Gaëlle, olhe para mim. Mantenha o foco em mim.

Eu afundava cada vez mais em direção ao fundo. Minha concentração estava dispersa. Eu me afundava e afundava e era difícil de respirar. Senti a cabeça girar e meus olhos arderem; não tinha voz para gritar por socorro, entretanto.

— Mantenha os olhos em mim. — Eu procurei seus olhos. — Não pare de olhar para mim.

Por segundos, o encontrei enquanto ele caminhava devagar em minha direção.

Então ouvi o grito do meu irmão após ser espancado e pude sentir as minhas lágrimas quentes enquanto era obrigada a assistir. As imagens voltaram a aparecer, mais fortes e vibrantes diante dos meus olhos, que queriam ser cobertos pela água da ilusão. Imagens do vermelho, imagens das feridas e os sons de dor e gritos apavorantes que ouvi minha infância inteira. A água que eu deveria deixar para trás, mas carregava comigo.

Eu vi o sangue respingando mais uma vez e aquilo chegava até minhas mãos e as manchava. Escorria e então derretia meu vestido surrado.

— Olhe para mim e tudo ficara bem. Continue olhando para mim.

Eu permaneci olhando, ainda que quase me afogasse. Era desesperador, mas eu mantive os olhos nele. Ele se aproximou, devagar e com calma, e eu mantive meus olhos em sua direção.

Os relances de memórias, arquivadas e guardadas, as que me apavoravam toda noite, estavam mais fracos.

— Não deixe de olhar para mim.

O Imperador me estendeu a mão e eu me agarrei, desesperada. Fui puxada para cima. A água ainda queria me agarrar e me puxar para o fundo do poço da solidão, mas ele estava ali, e de repente eu soube que eu ficaria bem. Que tudo ficaria bem.

O buraco sumiu do chão e eu não estava molhada. Estava sentada, ainda sentindo vontade de chorar, mas bem melhor do que antes. Os gritos passaram, juntamente da imagem das costas do meu irmão sendo dilaceradas e rasgadas pelos espinhos do chicote.

Enquanto ainda tentava entender, olhei para a ponta dos meus pés, onde tudo se quebrou.

A madeira estava concertada, a água ou qualquer indício dela foi embora.

A mancha de tinta vermelha como sangue havia desaparecido.

Arthora | A Queda de Um ImpérioOnde histórias criam vida. Descubra agora