10. A CULPA

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TÁSSIA NÃO TINHA CORAGEM DE PEGAR O CELULAR ALI, EM UMA RUA DESERTA, ESTRANHA. Mesmo assim, só de ver a altura em que o sol já estava, calculava que já estava atrasada – e muito! – para a aula. Olhou ao redor. Deserto. Pensou em voltar, mas as panturrilhas reclamavam do exercício inesperado que tiveram de fazer. Fez uma anotação mental para começar a se exercitar, escolheu a soleira da porta de um dos sobrados históricos de São Luís e sentou-se. Massageou as pernas e esticou o pescoço para a esquina. A porta por onde Patrick desaparecera continuava bem fechada. De fato, notava agora que o casario parecia até abandonado. Faltavam telhas pelo beiral, poucos azulejos portugueses tinham resistido nas paredes, o ferro das sacadas era só ferrugem.

A garota não conseguiu impedir que dezenas de suposições estimulassem seus neurônios a trabalhar em dobro. A base de tudo estava no fato de o quê um garoto até então caseiro, um exemplo de filho, apesar de não ser muito afeito aos estudos, o que um tipo como esse fazia num lugar tão... peculiar.

"O fim de um namoro causa tudo isso?", ressentiu-se. E foi o gatilho para a culpa também lhe fazer uma visita.

Patrick era carente. Disso ela sabia. O fato de ele exigir a companhia dela em tudo, mesmo que não houvesse contrapartida, era uma prova disso. Talvez a morte precoce do pai, talvez o excesso de zelo de dona Gigi, algo no processo de amadurecimento dele o deixara desse jeito. Certa vez, Fernando chegara a comentar com ela uma teoria de que a imersão excessiva de Patrick nos mundos dos jogos "poderia indicar que ele foge de alguma coisa que não sabe como lidar na realidade e busca resolver nos jogos". Quando começaram a namorar, muitos a perguntaram o porquê de ser logo com ele. A fama de jogatina do rapaz já ia longe, porém, Tássia sempre ignorou.

"Será se o namoro piorou as coisas?"

Pensou, pensou e arrependeu-se. Em um piscar de olhos, sentiu-se uma carrasca. O namorado precisava dela, gritava por ajuda, e ela, tão devota aos estudos, foi incapaz de estender a mão; incapaz de escutar o pedido e de ver os sinais de que algo estava errado.

Logo, ela percebeu que tipo de conclusão floresceria disso. Forçou a mente a seguir por outros caminhos. Teria de encarar a obviedade mais cedo ou mais tarde, ela sabia. Conhecia-se muito bem para saber quais passos daria, mas, naquele momento, preferia não nomear nada, nenhuma ação, antes de conversar com Patrick.

Escutou um barulho atrás de si e deu um pulo para frente. Pelo visto, os moradores do casarão haviam acordado. Talvez, aventou, devido ao barulho dos seus pensamentos. O que diria se alguém abrisse a porta e perguntasse o que ela fazia ali, na soleira deles? Olhou ao redor sem saber onde iria se esconder ou se ainda valia a pena continuar naquela espera, quando sentiu um toque em seu ombro.

Gelou.

— O que tu tá fazendo aqui?

Foi um misto de alívio e de vergonha. Quis até abraçar Patrick, mas se conteve. Passou a mão pela testa.

— Eu... Eu me perdi.

O garoto olhou ao redor. As pupilas se estreitaram. Se não estivesse de máscara, Tássia imaginou que haveria um esgar nos lábios do ex.

— Como é que tu te perdeu até vir parar aqui? Tu faz o mesmo caminho todo santo dia, nunca sai da rota.

— Sim... — gaguejou. — É só que hoje eu, tipo, quis... explorar um pouco a cidade.

Explorar? Tu, Tássia? Tu quis explorar o Centro? — Ele cruzou os braços, cético. — E perdendo aula?

— É um... um... um projeto pessoal; uma pesquisa que tô fazendo.

— Pro cursinho?

— Pra mim, Patrick. Só pra mim, tá bom? Coisa minha. Tu já vai começar a me tratar como se fosse meu dono, é sério?

Aquilo desnorteou o garoto. De repente, foi como ver a máscara de altivez dele escorregar e deixar à mostra a fragilidade que ela constatara enquanto o via de longe.

— Desculpa — e acrescentou em um fino de voz. — De novo eu sendo babaca...

— Tá... Tá tudo bem. Certo? — Ela olhou para os próprios pés e para os pés dele. Levou um susto. Além de ele estar de chinelo, havia um bônus. — Patrick, isso é uma tatuagem?

O garoto ficou com a parte visível do rosto tão vermelho que por um instante pareceu que acabara de sair de uma câmara de bronzeamento artificial.

— É.

— Mas tu nem tinha tatuagem até há pouco tempo.

Ele titubeou. Ajeitou a mochila nas costas, coçou a nuca.

— As coisas mudam, Tássia. Todo mundo muda, na verdade. É o que se espera, não é? Mudança.

— Sim, mas não de forma tão... rápida.

A porta do casarão se escancarou e uma senhorinha surgiu, intrigada ao ver o casal de adolescentes em sua porta. Tássia prendeu a respiração, murmurou um "bom dia", pediu desculpas e caminhou para longe. O rapaz correu para lhe alcançar.

— Tu tava me seguindo?

Ela prosseguiu sem olhar para o lado.

— Foi sem querer.

— Como se segue alguém sem querer?

— Eu... Ãh... Eu ia pro cursinho quando te vi vindo pra cá e... e fiquei curiosa do motivo de tu não ir pro cursinho. Foi isso — e emendou uma pergunta: — É pra cá que tu vem sempre que falta as aulas?

— Nem sempre.

— Certo. E o que tu tava fazendo naquele casarão?

Tássia fez a pergunta e seguiu adiante. Contudo, percebeu que o rapaz havia estancado metros atrás. Ao se virar, notou a expressão de preocupação em seu olhar direcionado a ela. Ele parecia implorar por ajuda.

"Droga!".

Aquele momento era um daqueles pontos de virada que definem os caminhos que a vida toma. Ela poderia muito bem ter gritado um "Ei, estancou aí? Vou chamar um guincho!" e ter seguido em frente. Entretanto, alimentada por aquele sentimento de culpa que ainda veio decorado com o jeito angustiado do ex, Tássia voltou para perto dele.

— Patrick, tá tudo bem?

Ele sustentou o olhar dela.

— Eu tô vindo pegar uns remédios toda semana.

A bomba foi jogada sem esperar que a ex-namorada se preparasse antes. Algo dentro de Tássia se agitou. As peças se encaixaram. Ela já sabia resposta. Mas precisava ouvir da boca dele.

— Que tipo de remédio?

— Pra me ajudar na... na academia. Com o corpo e tal...

— É o que eu tô pensando, Patrick? — Ele respirou fundo e assentiu. — Meu Deus, por quê? Tu nunca ligou pra aparência, pra coisa de ser forte; sempre disse que odiava academia. E agora... — olhou os músculos dele e, ao enxergar melhor, mais de perto, notou até uma barba mais cheia. — Cara, o que tá acontecendo, pelo amor de Deus?

E veio o disparo da segunda bomba atômica.

— É por causa do Breno.

*** 

[Sim, eu sei, as coisas só pioram. Descobertas, descobertas e mais descobertas. Continue comigo, não esmoreça! Deixe seu voto, apure os ouvidos e vem conferir o que há por trás de tanto mistério.]

Amor em Tempos de ENEMOnde histórias criam vida. Descubra agora