23. AFINIDADES

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UM AMBIENTE DE BIBLIOTECA É RECHEADO DE PARTICULARIDADES. Aquele silêncio, as prateleiras cheias de livros com todo aquele ar de serenidade e intelectualidade, passar um tempo em um lugar assim traz uma mudança do estado de espírito da pessoa. Naquela manhã de sábado, então, em uma São Luís tempestuosa, com o céu mais cinza do que cinzas de uma fogueira apagada, a Benedito Leite e suas mesas vazias era um berço de tranquilidade para que Breno dormisse enquanto Tássia, a cara enfezada, tentava se concentrar em alguma coisa.

Pensou em ir embora. É claro. Mas desistiu por diversos motivos. Primeiro, se voltasse para casa teria de lidar com o arzinho de "eu te avisei" da mãe, situação que nunca era agradável. Segundo, adora bibliotecas. Se havia um lugar onde se sentia confortável para deixar a mente vagar era em meio aos livros. Ressentia-se por viver em um apartamento pequeno, cujos cômodos já tinham cada um sua destinação. A possibilidade de montar uma biblioteca grande, toda organizada com prateleiras longas à la Marie Kondo, era mínima. Por isso, sempre que tinha oportunidade, tirava proveito das bibliotecas à sua disposição.

Contudo, se há algo capaz de irritar pessoas tão organizadas é estar na companhia de alguém que desdenha dessa qualidade.

A garota fez seus exercícios de respiração Uma, duas, quatro, dez, quinze vezes. Tinha a sorte de o lugar estar vazio. Assim, não receberia olhares de esguelha como se fosse cúmplice daquela criatura que escolhera uma mesa da biblioteca pública para dormir em uma manhã de tempestade. Moacyr Scliar, cujo livro fora deixado de lado, revirava no túmulo, Tássia tinha certeza.

Ela segurou a apostila com as duas mãos e bateu com força sobre a madeira. Por garantia, chutou a canela de Breno.

— Qual é? Me deixa...

— Como qual é? — Ela o viu mudar de posição e afundar ainda mais a cabeça contra o tecido da mochila. — A gente veio pra cá estudar!

— Eu disse para vocês que eu nem sabia se viria, não disse? E eu vim. Já cumpri o meu papel. Sinta-se abençoada.

— Mas o objetivo é que a gente fizesse um grupo de estudos para se ajudar — replicou.

Ele bocejou.

— Tá mais pra uma dupla de estudos, né?

Tássia viu a bibliotecária do andar passar ali perto e relancear um olhar de censura para o rapaz de boca escancarada.

— Sério. Como é que tu consegue ficar tão calmo sabendo que tem um monte de coisa pela frente?

— Que monte de coisa?

— Bom... Simulado, o ENEM, a universidade... O futuro mesmo.

Breno ergueu a cabeça e tornou a bocejar. Esfregou os olhos e espreguiçou-se.

— Olha, é legal tudo isso. Sério mesmo. Ficar preocupada com o dia de amanhã e tal. Eu era assim. De casa pro colégio, do colégio pro treino, do treino pra casa pra enfiar a cara nos estudos. Foi importante. Não vou dizer que não. Mas, sabe, eu deixei passar tanto oportunidade de viver, tanta oportunidade de conviver com as pessoas, que de repente — fez um gesto com a mão para simular uma explosão — puf, a vida passou. Eu percebi que me dediquei mais a fazer o que os meus pais achavam que seria o meu futuro brilhante do que buscar o que eu realmente queria. Se não der certo no ENEM, sério, calma. Não é o fim do mundo. Não é nem o começo do mundo, pra dizer a verdade.

— Bom, se eu também já tivesse tirado nota mil da redação, eu teria essa mesma tranquilidade de dizer que não estou nem aí pra nada.

Amor em Tempos de ENEMOnde histórias criam vida. Descubra agora