O CLIMA NA SEGUNDA-FEIRA PARECIA NORMAL, MAS TÁSSIA SENTIA COMO SE A TODO O MOMENTO ALGO ESTIVESSE PRESTES A ACONTECER. Apesar de a tempestade que lavou a ilha de São Luís ter ficado apenas como uma memória, a impressão era a de que um trovão gritaria sobre a cidade a qualquer instante. Quando isso acontecesse, ela sabia, o barulho traria consigo todos aqueles questionamentos que haviam lhe tirado o sono no final de semana. Nunca chegou a imaginar que chegaria ao dia em que teria insônia por duvidar se deveria mesmo ter priorizado os estudos ao invés de tentar a continuidade do namoro.
Se dissesse que após terminar com Patrick havia começado a "dormir feito um bebê" (feito alguns bebês, tenhamos um mínimo de sensatez!), ela seria hipócrita. Contudo, apesar daquela voz interna que questionava se não fora uma atitude exagerada, o passar dos dias serviu como se fossem miligramas de sonífero ministrados regularmente. Então, bastaram algumas horas na companhia de Breno e de Patrick para que ela descobrisse que tudo não passara de mero placebo e agora seria obrigada a engolir a realidade.
E a realidade não demorou a ser servida à mesa.
Há um sentimento engraçado, curioso até, quando você tem a oportunidade de ver alguém que conhece de longe. É como rever um filme depois de muitos anos: você sabe cada cena, cada música, cada sentimento, porém, tem diante de si uma nova perspectiva. Agora, pode notar sutilezas que até então haviam passado despercebidas, detalhes dos diálogos e até erros de gravação. Da mesma forma, estar em algum lugar e de repente ver um amigo de longe, ver os gestos, as atitudes, o modo como fala, sem participar de nenhuma dessas ações, é uma chance de conhecer essa pessoa por outro ângulo, sem que a percepção tenha alguma influência da intimidade que as duas compartilham.
Quando Tássia desceu do ônibus naquela manhã esquisita de segunda-feira, ela precisou respirou mais fundo. Sim, algo havia mudado dentro dela, percebeu. O comum seria descer na parada e caminhar o mais rápido possível para chegar ao Geração o quanto antes. Já no cursinho, podia dar uma estudada antes de as aulas iniciarem. Adorava fazer isso. Dessa vez, porém, não foi como se sentiu. Pelo contrário, estava pesada, desnorteada.
"Estou com medo de quê?"
Ela não sabia a resposta. O fato é que, ao invés de seguir seu rumo em direção ao cursinho, a garota se deixou seduzir pelos blocos de granito que ficavam por toda a extensão da Praça Deodoro. Sempre observou as pessoas sentadas por ali, olhares soltos pela vida que passava. Nunca entendeu qual a graça daquele marasmo, sem nem mesmo um livro como companhia. Contudo, quando se sentou, ela compreendeu.
Havia algo de libertador na passividade de apenas "ser mais uma na multidão". Ao invés de se vestir com os trajes exigidos pela sociedade ("a estudante", "a adolescente em busca de um futuro", "uma representante do futuro da nação", etc.), Tássia era... só uma pessoa qualquer. Era como se vivesse em uma autoestrada à 200Km/h e de repente desse um cavalo de pau, fosse para o acostamento, saísse do veículo e passasse a ver a vida passar.
Era bom.
Viu que a senhorinha que vendia café mancava da perna esquerda e praguejava sozinha quando os clientes se afastavam. O dono da banca de revistas, um sobrevivente em meio ao um mundo digital, passava a major parte do tempo limpando a poeira do balcão enquanto mascava um chiclete. A gari conversava com os companheiros de trabalho e, a cada rodada de pilhéria, jogava algumas folhas para dentro de uma galeria pluvial. Por baixo da máscara de sujeira que lhe servia de armadura, um adolescente que pedia moedas no sinal de trânsito tinha os olhos azuis. Um ônibus amarelo parou ali perto. Enquanto esperava os passageiros desembarcarem, o motorista olhou para o horizonte e fechou os olhos por uns segundos, estafado.
E ali, descendo desse ônibus, estava Patrick.
Tássia torceu para não ser vista. Nem precisava. Seria algo impossível de acontecer diante da quantidade de pessoas entre ela e o ex-namorado. Sem contar que ele tinha um ar perdido de alguém que não deveria estar ali.
Patrick Forin não era rico. Mas, em um país pobre e com desigualdades sociais acachapantes, o fato de ser de classe média alta já lhe conferia privilégios que o destacavam da maioria dos adolescentes do Brasil. Sempre andava com roupas de marca, celular caro, fones de ouvido bluetooth; viajava todas as férias, tinha notebook e os mais novos consoles de videogame à sua disposição. Fazia curso de inglês, tinha cartão de crédito e só vivia no cinema, por mais caro que o ingresso estivesse. Dona Gigi, a mãe dele, não escondia o mimo exagerado. Até algumas semanas antes, ela fazia questão de desviar quilômetros de sua rota para o trabalho só para deixar o filho no cursinho. Isso até o término do namoro ter dado uma chacoalhada na cabeça do rapaz. Desde então, ele passara a ir de ônibus, vestia-se com menos peças de marcas caras e, apesar de ainda ter uma espécie de "ar aristocrático" em seus gestos, ter ficado mais "gente como a gente". Ou assim Tássia pensava.
Ao ver Patrick de longe, ela notou coisas que nunca havia percebido durante o namoro.
Quando estava com ele, seja apenas como colega de escola, seja depois como namorada, achava Patrick muito seguro de si, um "nerd diferenciado", chegava a dizer. No colégio, o garoto conseguia fluir entre os vários grupos que compunham a cadeia alimentar dos estudantes. Alguns o chamavam de "falso nerd". Mas ali, vendo-o num ambiente distante do seu normal, notou como o garoto, por baixo do ar de superioridade, tinha certa fragilidade. Além disso, a postura dele tinha algo de artificial: a cabeça estava erguida demais, o peitoral estufado demais, o andar se pretendia descolado, mas só deixava ainda mais óbvio o teatro de tudo aquilo.
O que deu em Tássia, ela não saberia dizer. Remexeu-se e evitou pensamentos contrários ao que estava prestes a fazer. Num impulso, deixou o ex tomar uma distância que julgou ser segura e foi atrás dele. Ao invés de seguir em direção à rua onde ficava o cursinho, o garoto foi em frente pela Rua do Sol. Tássia estranhou. Nunca imaginou que Patrick saberia andar pelas ruas do Centro e do Centro Histórico.
"Se bem que antes ele seria intimidado por qualquer um que quisesse fazer alguma coisa...", lembrou-se ao comparar o corpo dele antes e depois de terem terminado.
O ex-namorado era o que se convencionou chamar de "filé de borboleta". Não chegava a ser um magrelo propriamente dito, mas estava longe de ser considerado "encorpado". Não à toa, o outro apelido que tinha, Tábua, lhe caía tão bem. Tássia ficou curiosa. Ao pensar sobre essa época escolar, o garoto não dava sinais de ser afetado por essa questão corporal. Levava tudo na brincadeira, ela lembrava. Agora, porém, ele parecia disposto a deixar o apelido no passado.
Patrick não "encorpara". Longe disso, estava meio que "inchado".
A camiseta que ele usava era uma que ela lhe dera de presente de aniversário, anos antes. Tudo bem, ele havia crescido, ficado mais velho, mais alto, e isso já teria um impacto no caimento da roupa. Mas, ela sabia muito bem, não ao ponto de a peça ficar grudada, colada no corpo dele. Nos braços, por exemplo, o tecido parecia prestes a se rasgar a um movimento mais brusco. A bermuda, então, levantava questionamentos se era jeans ou legging.
"Ninguém cresce tão rápido só com algumas semanas na academia", ela observou. Seguiu-o por ruas laterais, o pensamento à mil. Já estava suada pela caminhada que se obrigara a fazer. Apesar disso, um frio lhe estapeou diante de um novo pensamento que lhe veio à mente: "Pelo menos, não cresce de forma natural..."
E foi quando Patrick parou diante da porta de um casarão em um beco. Tássia estancou onde estava e correu para detrás de um poste na esquina. Espiou. O garoto esperou um tempo até a porta abrir e ele sumir lá dentro.
***
[Um típico "filhinho de papai" entrando em um casarão abandonado? Aí tem coisa... O que será? Você acha que Tássia fez certo ao seguir o ex-namorado? Espero que não aconteça nada de ruim, né? (emoji do diabinho sorridente)]
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Amor em Tempos de ENEM
Teen Fiction🏆 Vencedor Wattys 2022, Jovem Adulto Às vésperas do ENEM, Tássia, uma garota de 17 anos, se vê diante de uma difícil decisão: terminar o namoro com Patrick, já que o namorado não parece disposto a largar os jogos de videogame para estudar. Contudo...