UM MOMENTO ÚNICO É QUANDO ACONTECE A DESCONSTRUÇÃO DE UMA IMAGEM DE PERFEIÇÃO. De repente, é como se a cortina do teatro se fechasse e, ao invés de ficar da plateia em aplausos efusivos, a pessoa fosse puxada para os bastidores. Naquele final de domingo, Tássia se viu nas coxias do teatro Breno Ceres. Longe de tudo o que era apresentado nas redes sociais, distante da aura de mistério que ele emanava em uma pose blasé no cursinho, estava ali, jogado na cara dela, a fragilidade; a humanidade.
E é engraçado como, apesar de humanos, muitos se recusam a entender que um aspecto da humanidade inerente a todos é a queda, a fraqueza, a tristeza; o pranto, o choro, a dor.
Tássia olhou para aquele traço avermelhado na pele do rapaz como se a cicatriz obrigasse seus olhos a lidar com aquilo. Descrença, descontrole, incapacidade de falar algo, a vontade era de parar o tempo, retroceder, não saber.
— É, eu sei — ele tornou a cobrir o pulso e voltou à posição anterior, voltado para o copo na frente dele. — É um choque. As pessoas não sabem como lidar. Fora da bolha do TikTok , do Twitter e do Instagram, ninguém sabe falar cara a cara.
— É... Como foi? Quem dizer: como aconteceu?
No instante em que a última sílaba foi dita, a garota se arrependeu da pergunta. Era óbvio como tinha acontecido. Por mais que as pessoas evitassem o assunto, era evidente. Todo mundo tinha pelo menos uma noção. Breno, contudo, não pareceu se importar.
— Foi um momento de desespero. A morte da Élida tirou tudo de mim e... e toda a questão de eu não ter ninguém pra me estender a mão, a pressão que jogavam, tudo contribuiu para essa... Pra esse mergulho no poço.
— E quem te puxou?
Breno sorriu sem se virar para ela.
— Você vai ser uma boa repórter. Bons repórteres são interessados na vida. — Segundos de silêncio, então, veio a resposta. — O Helinho.
— O irmão da...
— Sim. Quando ele viu que eu não fui ao enterro, veio aqui me procurar e... E me encontrou. Foi ele quem chamou a ambulância, ligou pra minha mãe e até ajudou a revezar com o pessoal pra ficar comigo no hospital. — Virou a cabeça em direção à amiga. — O Patrick chegou a ir lá me visitar.
— Sério?
— Mas eu não quis receber ele. Se a minha raiva é grande hoje em dia, naquela época eu teria voado em cima dele. Depois disso eu passei uns meses no interior e a gente só foi se esbarrar de novo no cursinho.
— Tu ainda acha que a culpa foi dele?
O rapaz brincou com o seu pedaço de bolo. Os sons de um final de tarde em um condomínio, com crianças correndo e cachorros levados pelos donos para passear, começaram a entrar pelas janelas, suaves. O sol já se despedia e deixava a cidade naquela penumbra roxo-amarronzada pré-anoitecer.
— De verdade, não. É claro que a situação que o Patrick provocou na casa da Élida, o jeito que o Hélio ficou, o clima, enfim, tudo contribuiu para que alguém que já estava muito frágil piorar ainda mais. Mas hoje em dia, quando paro para analisar, eu tenho a impressão de que tudo o que aconteceu só acelerou o inevitável. — Ele olhou ao redor, para a escuridão que se avizinhava e levantou-se. — Pode me ajudar a fechar as janelas?
Tássia balançou a cabeça. Enquanto andava pela casa para ligar as luzes e ajudar o anfitrião, sentiu um sentimento que não esperava encontrar ali: gratidão. É claro que já tivera momentos assim com os amigos, principalmente com Fernando. Contudo, ali com Breno houve algo diferente, uma conexão que apenas o desnudar da alma consegue proporcionar. E o mais interessante é como ela não se sentia impelida a também contar algo profundo. Por vezes, ao conversar com algumas pessoas, sentia que havia quase uma espécie de "disputa" para ver quem tinha a história mais trágica. Ali, isso não aconteceu.
Quando terminaram de arrumar a casa e sentaram-se no sofá da sala, ela aproveitou que a Netflix ainda estava carregando para revelar esse sentimento.
— Obrigada por confiar em mim.
— Obrigado por não me julgar. E, principalmente, por não ficar com pena.
— Eu imagino como deve ser chato...
— Por isso que eu prefiro ficar calado. Prefiro que as pessoas pensem que sou arrogante do que fiquem me olhando como se a qualquer momento eu fosse pular de uma ponte.
E abriu um sorriso que contagiou Tássia. Apesar da seriedade do tema, Breno exalava maturidade. Enquanto ele procurava algo entre os filmes, séries e documentários do serviço de streaming, uma tarefa interminável, ela notou como, apesar da aparência jovial, ele parecia muito, muito mais velho.
— Quem vê a morte nunca volta a olhar o mundo com os mesmos olhos — ele comentou. Ao notar o aturdimento da garota, virou-se para ela. — O Hélio me dizia isso. Lembrei agora.
— Vocês pareciam se dar muito bem.
— Demais. Ele brincava que queria que eu fosse gay. — Sorriu, perdido em lembranças. — Queria que a gente viajasse pelo mundo. Fez bem em ir embora.
— Por que tu não foi com ele?
A pergunta pegou Breno de surpresa, tanto que as sobrancelhas dele se ergueram.
— Taí uma coisa que eu nunca parei pra pensar. Não sei. Acho que eu não tive coragem de deixar tudo pra trás desse jeito. Além disso, eu penso muito na minha mãe, sabe? Me enfiar na Legião Estrangeira é quase como sumir do mapa e não é bem isso o que eu queria. O Hélio, eu até entendo. Ele sempre falou mesmo em se libertar, sair de todo esse ambiente de preconceito. Eu reconheço meus privilégios de ter nascido hétero. As coisas que preciso resolver são mais internas do que relacionadas ao modo como os outros me veem.
— Já conseguiu?
— Estou na estrada para isso.
Escolheu um programa de competição de artesãos de vidro e perguntou se Tássia queria pipoca.
— Pipoca? Tu não janta, não?
— Bom, pelo menos isso eu tenho de ser um adolescente morando sozinho, né? Pequenas liberdades.
E correu para a cozinha para preparar uma baciada de pipoca para cada um e mais um depósito de pipoca doce. O objetivo era assistir aos 10 episódios para comemorar a construção daquela conexão entre os dois. Entretanto, ficaram tão interessados no programa que decidiram assistir a segunda temporada também. E quase foram até o último episódio se o interfone não tivesse tocado para avisar que havia um homem "um pouco alterado" procurando pela filha e ameaçando chamar a polícia.
Ao pegar o celular, Tássia percebeu que o aparelho estava no silencioso. Havia 38 ligações perdidas e mais de vinte mensagens no WhatsApp.
Pior ainda, já eram quase duas horas da manhã.
***
[Sem comentários. Pais sofrem, né? Enfim, deixe seu voto, tenha paciência e prepare a caneta para fazer o ENEM. Vamos juntos nessa jornada rumo ao futuro.]
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Amor em Tempos de ENEM
Ficção Adolescente🏆 Vencedor Wattys 2022, Jovem Adulto Às vésperas do ENEM, Tássia, uma garota de 17 anos, se vê diante de uma difícil decisão: terminar o namoro com Patrick, já que o namorado não parece disposto a largar os jogos de videogame para estudar. Contudo...