Transferência de votos

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Ver o Miguel sem vida era algo que nunca havia se passado por minha cabeça, sempre conversávamos sobre nossos planos para o futuro e como seria quando desfrutarmos dele. Na atual situação que me encontrava não conseguia acreditar que não haveria um futuro para ele, sua vida, assim como a milhares pessoas havia sido interrompida tão precocemente por causa do Covid.

Não demorou muito até que os pais do Miguel recebessem a notícia, como era de se esperar eles solicitaram que o corpo do Miguel fosse levado para enterrar na sua cidade natal. Apesar de compreender perfeitamente a escolha deles fiquei ainda mais triste porque isso impossibilitaria que eu pudesse me despedir do meu amigo.
Fiz o possível para estar com ele até que saísse do hospital e a Celeste esteve sempre comigo.
— Queria poder ir ao enterro. – disse para ela ao observamos seu corpo sendo transferido
— Você fez o suficiente, mesmo que fosse possível ir até a cidade do Miguel ainda sim não poderia ir ao sepultamento.  Os cemitérios estabeleceram um limite de 10 pessoas participassem do velório, nem mesmo toda família poderá se despedir.
— Não sei por quanto tempo vou poder aguentar essa situação.  – disse frustrado
— Estamos todos quebrados emocionalmente e fisicamente, por isso devemos nos apoiar. Ninguém consegue enfrentar situações difíceis sozinho, ainda mais essa que ninguém nunca esteve preparado.
— Obrigado por estar comigo, sei que não tenho sido fácil ultimamente. Você é uma ótima namorada, mesmo nosso relacionamento sendo de mentira. – ao dizer isso a sentir um pouco decepcionada
— Você está aí! – disse Audrey ao nos interromper – Posso falar com você? É sobre o Moura.
— Pode ir, tenho que ver se precisam de mim. – disse Celeste
— Irei te esperar para irmos para casa. – disse a ela, logo após acompanhei a Audrey deixando a Celeste pra trás

Enquanto acompanhava a Audrey até o escritório a observei o quanto estava cansada e abalada por causa de tudo o que tem acontecido. Dentre nós, a Audrey era a que mais tinha contato com o Miguel, isso sem dúvida deve ter a afetado bastante.
— Como você está? – a perguntei preocupado
— Sinceramente já que não posso acabar com essa situação atual, queria muito poder pedir demissão e ficar em casa enquanto vejo no noticiário todos trabalhando até acabar com o covid.
— Sabe que não conseguiríamos sem você.
— Eu pensava a mesma coisa a respeito do Miguel, acreditava que não conseguiríamos sem ele. O vi trabalhar loucamente para ajudar nossos pacientes a se recuperar e se isso não fosse possível ele se esforçava para que eles tivessem uma morte tranquila. – ela suspirou fundo – Ele era tão forte,  mesmo recusando um tratamento mais agressivo o Miguel estava apresentando melhorias, eu deveria ter insistido ainda mais, ter o  convencido… só de pensar que não pude ajudá-lo.
— Não se culpe, ninguém poderia.
— Irei me esforçar para que isso não aconteça novamente, não aceito perder mais ninguém. – disse ela determinada
— É sério Audrey, sabe que nosso trabalho é assim. Ficamos felizes quando nossos pacientes conseguem se recuperar, mas não podemos impedir que eles também venham a óbito, ainda mais quando se trata desse novo vírus. Você fez o seu melhor, e sei que irá continuar fazendo mas perdas são inevitáveis.
— Tudo bem, irei direto ao assunto já que a qualquer momento sua namorada virá atrás de você. Tenho uma notícia muito boa,  o Dr. Moura está livre do Covid.
— Gracias a Dios¡
— Por outro lado, infelizmente percebemos que o covid deixou algumas sequelas, além de ter agravado a diabetes, doença que ele já tinha, o Moura também desenvolveu fibrose pulmonar e está com dificuldades de linguagem, raciocínio, concentração e memória.
— O que podemos fazer?
— As coisas estão sob controle por enquanto, mas ele sabe que nessa condição terá que se afastar. Por isso ele pediu que eu viesse até você.
— Irei vê-lo imediatamente.
— Não, Javier! – ela me impediu – Ele pediu que eu viesse porque disse que isso seria algo difícil para ele.
— Isso?
— O Moura está retirando a candidatura ao cargo de diretor, e não para por aí transferiu os votos que ele tinha para você.
— Mas ele pode trabalhar de casa, assim como Conner, Carlos e outros estão fazendo.
— A lesão causada não pode ser revertida, o Moura quer se dedicar ao  tratamento e a terapias que podem retardar a evolução da doença. Por isso ele acha melhor deixar de ser um candidato e continuar o trabalho de maneira mais leve.
— Eu deveria conversar com ele.
— Por favor Javier, sabe que isso não é fácil para ele. Deixe para fazer isso quando ele estiver melhor, ele ainda está bastante abalado com tudo que estava acontecendo. 
— Tudo bem, irei aguardar um momento mais apropriado. – passei a organizar minhas coisas
— Irá voltar para casa? – perguntou ela observando
— Sim, tudo aconteceu tão rápido e inesperado desde que o teste deu negativo ainda não fui em casa.
— Percebi que a Celeste também ficou aqui no hospital, vocês estão precisando de um bom descanso.
— Sim… – respondi desconfortável
— Você está feliz por ter escolhido a Celeste invés de mim? A ama tanto assim?
— Que pergunta é essa? A essa altura sou incapaz de responder algo com coerência.
— Está dando desculpas?
— Não é isso, é que eu sinceramente não sei mais o que sinto. Me sinto confortável em ter a Celeste ao meu lado, assim como me sinto por ter você. Ambas são minhas amigas.
— Então a diferença é que ela carrega o título de namorada?
— Podemos dizer que sim.
— Sendo assim, você não gosta dela, apenas está habituado a tê-la por perto em situações difíceis. É como se a Celeste te oferecesse conforto, um apoio humanizado.
— Não sei se colocaria nessas palavras.
— Quão grande foi a saudades de você sentiu dela quando teve que ficar aqui em isolamento? Porque vocês ficaram distantes nesse período, não é verdade? Não a vi te visitar.
— Por favor Audrey, não vamos continuar com isso.
— Sabe que estou certa, você não gosta dela, e talvez ela também não goste de você também assim. – disse Audrey finalizando a conversa
— Estou de volta. – disse Celeste ao entrar no escritório, por um momento me pergunto se ela escutou a nossa conversa
— Não sabe bater na porta? – perguntou Audrey
— Isso é algo que não costumo fazer.
— Mas deveria. – disse para ela provocando um olhar chateado
— Vamos para casa? – perguntou Celeste
— Será que vocês podem me dar uma carona? Estou muito cansada para poder dirigir.
— Você está de carro e ainda sim pede carona?
— Isso mesmo, prefiro evitar acidentes no trânsito.
— Claro que não vamos te levar, só pode estar de brincadeira. – disse Celeste irritada
— Porque você é assim insensível? Pensei que era algo que você fazia só com seu namorado mas pelo visto é o modo como trata a todos.
— Por favor parem com isso. – as interrompi – Não irá nos custar nada levar a Audrey, pode sim vir conosco.
— Se está disposta a levar ela, saiba que não irei entrar no seu carro.
— Nos vemos em casa. – a respondi a deixando para trás

Foi um dia difícil para todos, e mesmo assim a Celeste se mostrava inflexível o que me irritava profundamente.

Através dos seus Olhos (2022)Onde histórias criam vida. Descubra agora