Angústias e Fatalidades

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Tengen estava conformado com o silêncio que dominava o quarto, nenhuma palavra havia sido dita desde sua chegada. Zenitsu havia se aninhado em seu colo, não parecia querer dizer ou ouvir nada, talvez estivesse organizando os pensamentos.

Toda aquela situação era um sufoco sem tamanho para a mente traumatizada do alfa, aquilo lhe trazia tantas lembranças horríveis. O casamento era motivo de uma dualidade de sentimentos dentro de si, um alívio florescia quando pensava que Zenitsu iria ficar protegido com ele e Kagaku jamais tornaria a pertubá-lo; por outro lado, Zenitsu estaria definitivamente em sua família, isso era preocupante.

Ver ômegas chorando não era uma novidade para si, conviveu com lágrimas a adolescência inteira. Sua família há muito estava mergulhada em desgosto e melancolia, tudo graças á Kenji, seu pai. Ele se lembrava bem de todas as vezes que ouviu sua mãe chorar escondida, das dores que ela sentia pelo corpo causadas pela voz de alfa do marido, os hematomas maquiados e cobertos.

Só de lembrar dos ensinamentos que Kenji insistia em proferir para ele se seus irmãos, Tengen sentia a raiva borbulhar dentro de si como um vulcão entrando em erupção. Por conta de um pai ditador e abusivo, todos os filhos sentiram suas almas serem despedaçadas. Ryota foi o que mais sofreu nas mãos do mais velho, não só dele, mas de  Hajime também.

Hajime era o filho perfeito aos olhos de Kenji, era um espelho monstruoso do pai e não hesitava em trazer mais angústias á Ryota, o único ômega dentre os irmãos. Tengen conseguia lembrar como se tivesse acabado de ver, o sorriso ensolarado e gentil de Ryota, sempre grande o suficiente para fechar seus olhos azuis como o céu. Sorriso esse que foi desaparecendo até não existir mais.

Ryota era um ômega incrivelmente gentil e exageradamente animado, parecia ter o poder de atrair situações atípicas das quais sempre rendiam boas histórias e risos. Ele e Hayato eram grandes parceiros de aventuras, enquanto que Tengen era sempre o primeiro a ficar sabendo delas, já que ambos corriam para contá-lo tudo. Quando Ryota alcançou idade de se casar, precisou mudar tudo em si para agradar os desejos de Kenji, os cabelos negros antes rebeldes ao vento, viviam presos em intermináveis tranças e presilhas douradas; os vestidos antes confortáveis e simples foram substituídos por tecidos pesados de cores vibrantes e amarras apertadas. Com o tempo, Ryota foi ficando cada vez mais parecido com Naho, olhar perdido, cabeça baixa e hematomas por baixo das roupas bonitas.

Quando Ryota fez 17 anos, Kenji arranjou um casamento com um nobre de outra cidade, um dos filhos da família Kwajima, dizendo que nenhum bom alfa da região aceitaria Ryota como companheiro. Recebeu o pretendente com uma alegria e hospitalidade sem tamanho, não cansando de proferir o quão sortudo seu filho era de poder casar-se com um alfa tão honroso. Toda a honra que aquele miserável aparentava ter, fora descartada quando, na mesma noite que chegou, violou a pureza de Ryota e deixou-o ferido e desonrado.

Kenji e Hajime não pouparam palavras para humilhar Ryota, pondo a culpa do infortúnio no ômega, tentando lhe obrigar a prosseguir com o matrimônio. Tengen não conseguia sequer imaginar o tamanho do desespero e angústia que seu irmão sentiu diante de tamanha covardia.

As lágrimas começaram a brotar em seus olhos fúcsia, uma ânsia de vômito subiu por sua garganta com as memória vívidas demais que passaram por sua mente como uma maldição. Jamais esqueceria da imagem perturbadora que presenciou, o corpo sem vida de Ryota boiava no lago, os olhos abertos e desprovidos de qualquer brilho ou emoção, a pele banhada pela luz da lua de forma fantasmagórica. Ryota preferiu a morte do que permanecer sendo tratado de maneira tão suja pelo próprio pai. Seus ouvidos doeram com a mera lembrança dos gritos horrorizados de sua mãe, do choro doloroso e violento que fez todo seu corpo chacoalhar. O alfa nem sequer percebeu quando as lágrimas passaram a descer por seu rosto como um rio.

Sentiu mãos passando por seu rosto, havia fechado os olhos buscando afastar as lembranças, mas logo os abriu, se deparando com as íris douradas de Zenitsu. O mesmo o olhava sem julgamentos ou estranheza, a preocupação parecia quase palpável em seu rosto, seus feromônios estavam fortes e os rodeava como uma proteção e um acalento.

- O que foi?- A voz suave lhe causou arrepios na nuca.

- Zenitsu, eu prometo que vou te proteger.- Tengen tomou os mãos pequenas nas suas, segurando em seu peito.- Jamais deixarei nenhuma pessoa encostar em você e sair impune, eu prometo.

O alfa jurou a si mesmo em seu coração, não permitiria que uma mesma fatalidade tão cruel ocorresse uma segunda vez. Não pôde proteger sua mãe, muito menos Ryota, mas não vacilaria com Zenitsu, pela honra de todos os ômegas que faziam parte de sua vida e lhe deram amor e educação, protegeria o Agatsuma com sua própria vida se fosse necessário. Naho, Ryota, e até Kyojuro, teriam um alguém do qual poderiam sentir orgulho, mesmo não fazendo idéia de sua promessa e seus esforços.

- Você está se sentindo melhor?- Perguntou para o loiro quando o mesmo nada disse.

- Dentro do possível.- Os olhos dourados se desviaram de si.

- O que Kaigaku estava dizendo?

- Verdades dolorosas. - O Agatsuma soltou um suspiro, os olhos voltando a lacrimejar. - Tudo que ele disse era verdade.

O Uzui uniu as sobrancelhas, uma expressão confusa no rosto. O que exatamente Zenitsu queria dizer com aquilo? Que Kaigaku não era culpado ou coisa parecida?

- Ele disse, que minha mãe era ruim pra ele, e que eu sou igual. - A voz embargada fez o peito de Tengen se apertar. - Disse que eu tenho sido ingrato com ele esse tempo todo, igual Inako foi. E disse que eu sou covarde por me desculpar e lamentar só quando as pessoas partem.

- Você sabe que isso mentira.

- Ele tem razão, se Inako não tivesse nos separado, talvez hoje seríamos bons irmãos. Eu não fiz nada para mudar isso, me mantive longe, dei trabalho imenso para vovô, e agora ele se foi, e Kaigaku ficou só. Talvez tudo que ele queira seja um pouco de atenção e afeto.

Zenitsu tentava entender o que acontecia com Kaigaku, ele não havia se esquecido de todos os momentos de desespero que o mais velho lhe causou, o nojo que sentiu de si próprio ainda lhe assombrava trazendo arrepios na coluna. Mas a voz do alfa parecia tão ressentida quando falava de Inako, Zenitsu talvez conseguisse perdoar as coisas passadas e tentar reparar os erros, queria acreditar nisso.

- Você acha que Inako é culpado?- Tengen parecia um pouco incrédulo, custaria muito a crer que as palavras de alguém como Kaigaku seriam verdadeiras em algum momento.

- Eu não sei.- Zenitsu se jogou na cama sentindo o corpo dolorido.- Eu não sei, e odeio isso. A dúvida deixa as coisas tão vagas, me sinto perdido.

- Pense melhor nisso em outro momento, agora, o ideal seria você dormir para descansar o suficiente para amanhã.- Tengen deitou também, mantendo um espaço mínimo entre os dois.

- A partir de amanhã eu vou morar com você, isso parece meio......súbito.

- É súbito, a gente se conhece há uma semana só.

- Nem tinha reparado, parece que nos conhecemos há meses.

Olharam-se em silêncio por alguns instantes, apreciando a ligação que estavam construindo. Não era desconfortável ou estranho, quando estavam juntos as coisas pareciam sempre certas, o conforto era imediato e acalentador. Tengen quebrou o contato visual para pegar uma coberta, ao cobrir os dois, se surpreendeu com Zenitsu se arrastando para perto de si, a cabeça apoiada em seu peito.

- Amanhã as coisas vão mudar completamente.- A voz de Zenitsu saiu abafada.- Vou sentir saudades daqui.

- Pode levar o que quiser pra lá.

- Até meus quadros?

- Todos eles.

Calaram-se e esperaram o sono chegar.



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