Prólogo

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             Raios cortavam o céu em longas fatias de luz azul, sangrando-o num relâmpago escarlate, devorando as ruas em seus estrondos de gigantes. Um véu negro tampava as estrelas e o luar. Trovões tremeluziam por detrás das nuvens penumbradas, mordiscando em assustadoras explosões súbitas, como na ira de um antigo deus pagão. O chão era barro por completo, preto e sem vida, que se fazia invisível para olhos nus, grudenta aos pés como um carrapato, escorregadia como um riacho e salgada como lágrimas de morte. Cada passo era uma mixórdia, cada piso era uma reza para os céus para que nada viesse buscá-los para entre as nuvens, simplesmente pisavam num monte de nada, com longas paredes escuras aos arredores e um chão escorregadio ainda mais escuro tropeçando seus pés. Por frações de segundos o caminho podia ser visto, quando as longas e afiadas lâminas de luz estouravam sobre suas cabeças, em trovoadas tão densas que ecoavam por quilômetros e acordavam os latidos dos cães das casas vizinhas, num verdadeiro som de inferno.

           ... Era esta a imagem da noite da sua aparição...

           Uma mulher corria na penumbrosa noite, segurando um tumultuado de tecidos ao peito, onde pusera algumas frutas e umas tantas moedas – poucas, suficiente para dar o som de cobre batendo em cobre à velocidade dos seus passos. Vestia trapos velhos e já carcomidos pelas gotas pesadas da tempestade, de um marrom forte e bem apreciado se não fosse a escuridão da meia-madrugada Os cabelos esfarrapados de camomila grudavam-se ao corpo, encharcados pela água, descendo da cabeça e derramando-se sobre os ombros magros de mulher, como resquícios de um lago escuro duma água putrefata. Corria para chegar a sua casa logo adiante a poucos metros de onde estava... Mas não era da chuva que corria.

          Mãos pesadas surgiram do interior das trevas e a empurraram ao chão. Das mãos surgiu a silhueta de um homem. E ao lado deste, apareceram mais quatro de quase mesma altura. Um grupo de delinquentes, cuja pele de porco espinho delatava seu aspecto nada humano; os dentes eram grandes e afiados como de lobo; as garras eram grossas e cortantes como de tigre, que sangravam o próprio vento; e as roupas eram duras como uma casca de árvore típica daquela espécie áspera. Os temíveis queenzels.

          O líder era o mais alto, dos braços mais robustos e do olhar mais maléfico. Seus olhos escuros pela morte – virando não mais que buracos de sombra ao seu rosto – contemplavam-nos despirem a mulher, às gargalhadas. Seus estômagos se embrulhavam pela fome e ardiam pela sede de sangue. O corpo saudável da jovem mulher pareceu-lhes um cordeiro cosido flutuando em frente aos seus olhos ao primeiro instante que passara por entre eles. Logo correram atrás dela gritando em gracejo, enquanto a saliva era criada em suas bocas e derramando-se pelo vento num fervor gigante da fome.

          — Poupem-me – ela clamava. – Farei o que quiserem. Soltem-me!

          — O que queremos é que se aquiete – respondiam-na os homens – e que nos farte a barriga até o fim da noite.

          A mulher estrebuchava aos seus braços. Seis longas mãos pesadas, de dedos gordos e sujos de lama, arrancando suas vestes, enquanto as pernas frágeis e pálidas da moça chutavam o vento querendo atingi-los. Suas falhas tentativas eram piadas para eles, de fazê-los arfarem de tanto rir. Um firmando-a ao chão por cima da cabeça, fazendo peso aos seus ombros, enquanto os demais vinham cada um por um lado rasgando os tecidos para fora do seu corpo.

          — Se é fome que têm – ela os berrava – Há frutas em meus panos.

          Seu tumultuado de tecidos caíra para longe do seu alcance quando derrubaram-na. Mas não era de frutas que tinham fome, sim de carne fresca, de pele macia desfiando-se nos dentes e massageando-os a língua; era do corpo macio de uma jovem para saciá-los do seu olhar malicioso.

As Viagens de Um Vagante PerdidoOnde histórias criam vida. Descubra agora