O Ilusório

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          Ora, Tresham era um amante das nuvens — talvez o de maior ênfase no contato com o céu — não porque gostasse delas — na verdade, ele tampouco se importava com o que faziam ou deixavam de fazer — mas porque elas pareciam gostar dele. Pois não havia recanto sobre a face do mundo em que elas não se aglomerassem por pelo menos uma vez e se fizessem presente em temerosas e grossas camadas de nuvens escuras e tempestuosas sobre sua cabeça, e, em alto vigor, se lançassem sobre ele. Passadas as luas Tresham já se perdia em cidades longínquas, cujas arestas nem mesmo ele saberia denominar, sem rua ou jardim cujos nomes ele conhecesse. Ele não olhara para trás, não olhara para os lados, o rumo sempre avante, rumo ao fim que nunca atingia, desejando desvencilhar-se daquilo que encontra nas cidades antepassadas. E de repente, já estava chovendo.

          Mais monstros foram encontrados durante seu caminho, mas nenhum seria interessante ser contado em seus anais de história. Este é um relato dos contos de Tresham e das vivências de maior importância, e até então poucos lhe pareciam úteis para se contar. O que se pode ser dito é apenas que cada monstro, cada pedra, cada nova morada levaram-no direto para aquela cidade, na qual, agora, via-se imerso em águas gordas e gélidas. Era uma noite densa, com trovões alarmantes que o cegavam a caminhada — como já de praxe em suas histórias — porém uma chuva tão barulhenta que por vezes confundia-a com rugidos de monstros. Havia-lhe certa paranoia na mente, mas não por em vão; lendas eram contadas sobre monstros que se alojavam entre as beiradas das trevas; em algumas, inclusive, ele próprio era um deles.

          Tresham não se incomodava com açoites de águas, mas já estava fatigado das viagens, e nada conseguia ver pelas ruas, escuras com estavam. Não era da sua vontade migrar por terrenos indesejados, nem, tampouco, acabar retornando por onde viera sem que percebesse, assim logo mirou seus olhos para os lados e procurou por hospedarias, tavernas, ou qualquer lugar no qual pudesse encontrar abrigo. O que não encontrou de imediato, fosse pelo nublado do céu ou pela escassez da própria cidade.

          Por ruas largas foi vagando, com a cor da madeira das casas e das oficinas saltando para seus olhos, até ver, por fim, no recanto mais indiscreto da ruela, um aglomerado considerável de pessoas entrarem em alguma espécie de espaço público; Tresham bem que tentou ler o letreiro, mas a chuva trazia vapor, e não lhe permitiu entender o nome.

          Era bem maior que uma taverna e, isso pôde ver, o som que dela vinha parecia uivar para seus ouvidos. Bastou aproximar-se da entrada e empurrar suas portas de ferro — que alto rangeram em estado de agonia — e o tumulto turbulento o assolou. Fora obrigado a caminhar por alguns corredores até que chegasse ao seu ventre, com o som vindo de longe tornando-se mais próximo e menos poluído a cada passo. Foi ao atravessar o último corredor que enfim decifrou o som, e entendeu tratar-se de músicas e conversas. Muitas conversas. Não o cenário de horror que sua mente por costume cria ser.


          Em um palco construído no exato centro do que era certamente um salão de festividades, uma pequena camerata com violinos, violoncelos e contrabaixos marcavam a melodia de uma música vívida e crescente, enquanto trombones, clarinetes, e uma mulher batendo ritmos em um bango travavam batalha de rimas uniformes em base para a cantoria do elfo que cantava, em pé em frente a todos. E ele dançava. E ele cantava. Céus, quão linda era a sua voz! Sua garganta era um trovão, pois não havia centímetro do salão no qual não chegasse a sua cantoria; doce e jovial, assim como o desejado por todos que frequentavam o lugar. Ele girava em volta de si mesmo. Ele saltava de um lado para outro. Uma pilastra fina de ferro estava sempre firmada em sua frente, assim como também algumas semelhantes jaziam em frente aos demais músicos, cuja ponta, pomposa, tomava para si todo o som da sua voz e, ligada a cabos, levava-a para dezenas de auto falantes que se encimavam no topo das paredes. Tresham acabava de sair da melodia da natureza, mas acabara por entrar entre a melodia dos jovens. Era uma noite de festa aquela, e ninguém que ali estivesse se importava se chovia ou não. A não ser ele.

As Viagens de Um Vagante PerdidoOnde histórias criam vida. Descubra agora