Capítulo 10

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          — Há alguma outra saída deste lugar? — a mulher gritava exacerbada no porão.

          — Não — a velhinha lhe respondeu. — Sinto muito.

          Desconsolada, a mãe jogou os olhos para os lados à procura de um milagre. O que mais poderiam fazer que não fugir? Foi quando se deu conta da sorte que lhe predominava. Estavam em uma espécie de estoque de poções.

          — O que são essas coisas? — ela perguntou.

          — São alguns remédios caseiros que eu vendo  — o senhor a respondeu.

          Havia plantas, garrafas, ervas, inúmeros materiais postos em prateleiras e barris. Tantos vasos com tamanha variedade que um odor diferenciado de natureza predominava pelo local.

          A menina brilhou os olhos ao vê-los.

          — Vocês têm erva de sãân? — ela disse de repente, com sua vozinha meiga.

          —... Muito pouco, eu acho...

          — Só precisamos de um pouco...

          — Para o quê, filha — sua mãe a exclamou. A menina ainda agarrada à sua perna — o que quer com isso?

          — Lembra da poção que passamos no corpo para que os lobos não sentissem nosso cheiro? É feita com isso. Eles odeiam o cheiro.

          — Como sabe?

          — Tresham me contou quando perguntei o que fazer caso tudo desse errado. Fui perguntar enquanto vocês dormiam anteontem.

          A dona da casa caminhou pelo porão á procura da erva. Estava escuro ali, apenas alguns riscos de luz surgindo das frestas que havia espalhados pelo teto o que dificultava sua procura. Quando enfim o encontrou, alegre pela sorte que tinha, entregou à garota um vaso com a erva que pedira.

          A menina correu para uma mesa, cortou alguns pedaços da erva, pediu que lhe entregassem algumas daquelas poções... E misturava tudo em uma vasilha. De fato fora sempre a mais interessada no trabalho de fazendeiro do pai, por isso era a mais cuidadosa com tais ingredientes; era comum da sua família pensar em como poderia se tornar uma excelente curandeira. Nem por isso sua mãe deixava de olhá-la com surpresa. Como tanta informação poderia caber dentro de uma mente tão pequena? Aquela mesma garota volta e meia ainda acordava pelas noites molhando a cama...!

          Ao término de tudo uma fumaça catinguenta começou a se alastrar do pote. A menina tampava o rosto com a própria blusa e todos seguiram seu exemplo, mas mesmo assim tossiam, o cheiro era detestável.

          — Espero que isso dê certo — dizia sua mãe.

          A fumaça começou a se alastrar pelas frestas do teto, espalhando-se todo o cômodo acima como uma nuvem amostardada de veneno. Quando ouviram o resmungar dos lobos, trataram de, temerosos, hesitantes, abrirem a porta do porão, e o cheiro maior da fumaça se alastrou para fora em neblinas escuras. Os lobos quase os atacaram, mas a fumaça entrou por suas narinas, e eles logo começaram a ranger de incômodo. Pouco a pouco foram saindo da casa, difícil estava para eles respirar; seus focinhos eram demasiado sensíveis para aquele tipo de mistura.

          A mãe virou-se para sua filha e, entre uma tosse e outra, disse-a:

          — Muito bem, minha filha!

          Saíram todos tossindo do porão, apoiados um no outro, as mãos e os antebraços sobre a boca e o nariz temendo que também se intoxicassem pelo forte odor. Foram direto à porta de entrada para se retirar, porém viram que os lobos não tinham fugido, eles haviam apenas saído da casa, mas ainda permaneciam ao seu redor, esperando que as nuvens tóxicas se dissipassem ou que as pessoas ali dentro desistissem e se levassem para o céu aberto. Se saíssem da casa, morreriam devorados por eles.

          — Para o andar de cima! — então disse o velhinho.

          Subiram às escadas meio torvos, toda aquela fumaceira não estava lhes fazendo bem. Sempre tossindo com força. Chegaram ao quarto do casal de idosos em passos desastrados; ao menos ali a fumaça não estava tão forte. Abriram as janelas para inspirar ar puro logo em seguida, fecharam a porta para impedir que mais fumaça entrasse, mas o ar continuava poluído. O cheiro da erva exalava até para fora da casa, em minutos parecia que um incêndio havia sido criado em seu interior e que fumaças de chamas se exalassem. Dentro, um gás tóxico os corroendo; fora, um mini exército de lobos à espera da sua carne.


          Tresham era hábil para correr mais veloz que um cavalo quando era do seu desejo. Suas pernas não eram humanas nem animalescas, eram... Assim como todo ele, um mistério. Os lobos quase o mordiam, correndo ao seu encalço numa disputa dificultosa, tendo, o guerreiro, que derrubar todos que o apareciam na frente, desviando de uma abocanhada ou outra. à direita, um ataque de patas, à esquerda, um ataque de mordidas. Sua espada cortando horizonte e vertical, fazendo sangue de lobo garoar sobre sua armadura. Rumo à estrada ele seguia, e nada ali seria capaz de pará-lo.

          Estava mais que na metade do caminho quando encontrou o corpo do cavalo. Averiguou se não tinham outros corpos pelo chão e sorriu por não encontrar nenhum. Então de longe avistou uma casa com luzes acesas e fumaça indo para o céu. Ele entendeu o que acontecera. Saiu correndo ao mesmo segundo em temor que fosse fogo.

          A menina foi quem primeiro o viu se aproximar da casa e logo começou a clamar aos berros por ele. Já a mulher, ao vê-lo, só soube perguntar, desesperada:

          — Onde está meu marido?

          Uma pergunta que ninguém respondeu, e que ninguém repetiu. O problema ali já era grave o bastante para se preocuparem com os que aconteciam cantos afora.

          Tresham ficou a três metros dos lobos que rodeavam a casa. Analisou cada centímetro do que acontecia. Uma ideia criada em mente, berrou aos lobos para que se virassem a ele. E eles  ouviram, e se viraram a ele, e vieram a ele. Correram para atacá-lo sem nem pensar. Tresham teve que batalhar contra eles e mais o outro grupo que já vinha a persegui-lo desde o precipício.

          Era sempre a mesma forma de se proteger, quase os mesmos golpes. Porém eficazes. Chutes para um lado, socos, para outro. Sua espada cortava-os feito papel. Quando tentavam mordê-lo só o que sentiam era o gosto da armadura que o protegia.

          Tresham não se deixava derrubar. Avançava um passo de cada vez.

          Eram mais de vinte lobos.

          A menina ficava berrando para ele:

          — Atrás de você! Corra! Cuidado! À sua esquerda!

          Sua mãe pedia-a que se calasse. Mas isso realmente o ajudava; não em estratégia, mas em incentivo.

          Os lobos saltavam em suas costas. Tresham tinha que se mover como numa dança, indo para os lados em rodopios, cortando a todos que chegassem perto. A maior fera no local não eram os lobos, mas ele próprio! Tresham os derrotava sem muito esforço; nada comparado ao que já enfrentara na vida. Um homem tão alto e tão forte que fazia o chão tremer. Suas pupilas brilhavam num tom avermelhado de ódio. Lançava algumas bombinhas do seu cinto contornando-os sem pausas, até os encurralarem num círculo de fogo. Eles uivavam para ele, rangendo os dentes. Um bafo de morte saia de todos. Um odor de sangue envelhecido cravava em sua pelugem dura de sujeira.

          Matara mais de vinte só naquele momento. E os que não matara conseguira prender em volta de um círculo de fogo criado pelas poções inflamáveis que trazia ao cinto.

          Então foi para perto da janela e as disse numa só palavra para que o saltassem aos seus braços. primeiro os idosos, depois a mulher, e por último a garota. Em minutos já estavam todos ao chão.

          E os lobos dentro do círculo de fogo tentando saltar para fora das chamas.

          — Onde está meu marido? — a mulher voltou a perguntá-lo.

          — Seguro — ele a respondeu.

          Ou, talvez, nem tanto...

As Viagens de Um Vagante PerdidoOnde histórias criam vida. Descubra agora