O rei era o que menos golpeava, esperando que seus homens enfrentassem os monstros por sua causa. Quando um dos mortos invadia seu campo e o obrigava a ter que atacar, ele agia de modo desmembrado, tendo êxito nos golpes mas com seu corpo estranhando a movimentação; a lembrança das batalhas e dos confrontos simplesmente haviam se esvaído dos seus membros, tamanho o tempo que estivera longe deles. O ar já lhe estava rarefeito no início da batalha, sua barriga saliente engasgava-se com aquela armadura apertada; sua coluna havia há anos se adaptado a maneira torva e curvada do trono. O dom da espada ainda lhe era prevalente, mas a força e a coragem já não mais o existiam.
Os primeiros instantes de uma batalha eram sempre contidos em avaliar a força dos exércitos inimigos. E esta, era claro, sobressaia-se no lado oposto. Os chefes da guarda continuavam a berrar para seus homens que suportassem com todas as forças, disparando suas flechas ou cortando com suas lâminas, em profundo desespero; a fúria dos mortos era quase humana, como se a fera vingativa do seu senhor falasse por através dos seus membros.
O rei, por outro lado, já não se lembrava mais como era falar. O desespero lhe era vasto, e seus olhos esbugalhados fitavam os monstros se aproximando, como um rato que avista um felino vindo abocanhá-lo. Era comum que Tresham tivesse que salvá-lo dos mortos com seus ataques brutais de espada e chutes estrondosos, pois ele mesmo congelava com o próprio temor. Sentia raiva da sua covardia arrogante, internamente estava gritando ordens para seus braços e suas pernas, mas só no que sabia pensar era em como desejava retornar para o conforto de sua cama e abrandar a ansiedade do seu coração com o calor do corpo de uma das suas donzelas do harém. Maior ainda, porém, foi o temor quando um dos ursos veio correndo para a sua direção e urrou não como um animal, mas como uma besta, uma fera, uma coisa do além do mundo imaginativo, que apenas os livros de horror saberiam explicar. E grande era o seu dorso, peludo em tons de marrom e preto, com sangue verde emanado odores pútridos e gosmas enegrecidas jorrando por entre suas gengivas cortadas. Nenhum olho jamais se arregalou tanto quanto os do rei naquele dia.
O urso parecia reconhecê-lo de épocas antigas. Seus olhos mórbidos e arredondados fitaram-no no horror de um doente pervertido. Suas patas traseiras firmaram-se como um par de pernas, e o urso, de repente, se viu tal qual um humano, e caminhou para ele correria desvairada, e firmou as unhas grossas de seus dedos, a meio palmo de arrancar o seu coração...
Não fosse Tresham se aproximar, o rei teria morrido. Dezenas dos arqueiros dispararam suas flechas contra o peito do animal, mas nenhum efeito o aconteceu. Ele não sentia mais dor, e nada além da ira da vingança motivou o urro da sua voz. Então Tresham se aproximou e decepou a cabeça do urso com um único golpe violento da sua espada. E depois os seus braços, e, por último, as suas pernas, ainda que todas as partes do corpo daquela coisa — um dia já chamada de ser da natureza — não parassem de se mover.
No instante seguinte, Tresham segurou o rei pelos ombros e lhe esbofeteou o rosto, e gritou:
— Veja se acorde, majestade! Já tem mortos demais por aqui para agir como um morto.
Um ato pelo qual qualquer outro homem seria sentenciado à morte, mas que todos os soldados — e inclusive o próprio rei — fingiram não ver, pois não eram tolos de decretá-lo para um ser como Tresham.
Além do mais, diga-se de passagem, talvez tenha sido aquele um dos golpes mais árduos de toda a carreira de guerreiro de Tresham, pois fora um esbofetear sem pretensão de morte, e controlar a força usual de mãos para que simplesmente não quebrassem a cabeça do rei fora uma luta constante.
Sua mão não apenas trouxera a consciência para os olhos do rei, mas também firmaram uma marca desastrosa em sua bochecha; o palmo e a silhueta dos seus dedos tornaram-se uma lembrança vermelha e arranhada em sua pele gorda e flácida. Quando olhou para os lados e o seu guerreiro protetor voltou-se para os demais inimigos que vinham, a coragem dos seus antepassados, que uma vez o possuira na juventude, o retornou. Com maior bravura empunhou sua espada, e a raiva pelo que estava acontecendo o dera mais força. Aos poucos, fora recuperando as habilidades de outrora. Os golpes foram ficando mais velozes, com maior peso, interrompendo as lanças dos soldados mortos, e cortando os braços daqueles que conseguia. Claro que nem por isso deixava de se esconder na sombra de Tresham, pois era este o seu maior escudo, que atacava sempre quando preciso.
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As Viagens de Um Vagante Perdido
Fantasía"... Seus olhos eram afiados, seu coração era mistério. Para o além dos mares e das terras ele marcha, sem ninguém jamais saber para onde vai. Uma espada à cintura, poções ao cinto, uma máscara ao rosto, e um oceano de monstros a matar. Uma sombra...