Mas havia algo nas palavras de Jonathan que se mostrou correto: a chuva aumentara, tomando a madrugada inteira numa tempestade raivosa, que fez cães latirem e pessoas dormirem com profundeza. O que, por recompensa, fez da cidade uma felizarda no dia seguinte, ao ser recebida com um amanhecer estupendo, onde o sol iluminava com vontade, em temperatura ideal de dias de solstício. O ar estava úmido por conta das chuvas, e o vento, gélido pela mesma razão, gostoso de respirar. Com o chão escorregadio onde crianças corriam para deslizar em brincadeira, e as pichações rabiscadas nos muros dos prédios derretidos e desfeitos.
E Tresham também fora outro que não se enganara em suas palavras, e de fato fora para uma taverna, assim como havia dito. Bebia essência de dragão naquele momento — uma bebida tão forte que revirava os olhos de quem o tomasse, mas que para ele era quase tão doce quanto chocolate amargo.
Sentava-se perante o balcão da taverna, com olhos bem atentos em todas as direções ao redor, então um copo gigante sendo firmado por seus dedos, e tomando sua bebida por baixo da máscara. Quanto aos demais clientes — ora! — olhavam-no sem jamais conseguir desgrudar os olhos da sua figura. Estavam em poucos naquela manhã, mas as palavras vinham em muitas. Alguns de certo modo até o conheciam, e, para aqueles que não, cochichavam-lhes histórias a seu respeito, sempre mantendo o olhar sobre a figura corpulenta do guerreiro.
— Aquele é Tresham — diziam. — O Cuspidor de Fogo. E contam as lendas que já matou um dragão usando apenas uma tora de madeira...
— Dois trolls — outros entoavam — uma vez tentaram devorá-lo quando ele tinha dez anos, e ele os matou com o próprio espeto com que iriam rodá-lo na fogueira...
— Parece que uma cobra venenosa — outro completava — mordeu -lhe uma vez, e que depois de dois dias de muita agonia e sofrimento.... a cobra morreu por envenenamento...
Algumas eram verdadeiras, outras, mais ou menos mentirosas, ainda que nem sempre fosse possível saber qual era qual.
Tresham ouvia todas as histórias, ainda que não movesse músculo para demonstrá-lo. Os homens e mulheres ali presentes não podiam vê-lo por conta da máscara, mas ele sorria por baixo dela, divertindo-se com os mitos e contos que entoavam ao seu respeito. Desde há muito que o faziam, e desde mais tempo ainda que Tresham aprendera a não se enfurecer pelas distorções das suas aventuras, mas a encontrar motivo para risos nelas. Afinal, ele era Tresham, O Demônio da Água Negra, e havia uma razão para que tivesse esse nome.
Não fora sem sentindo, então, quando o sino da porta cantou, e sons tumultuados de passos vieram firmes para dentro da taverna. Tresham não precisou erguer olhos — somente que aguçasse os ouvidos — para compreender que os passos vinham a ele, e que mais uma história muito em breve seria refeita perante testemunhas muito criativas.
E os passos ecoavam o som de cavalos que trotavam não em quatro, mas em duas patas, que logo fez o guerreiro reconhecer o nome de sua espécie; além do fedor de feno e calcanhar ralado saltar para dentro de suas narinas. Pois os faunos fajutos, com pernas de cavalos no lugar de humanas ou de bodes, vinham em conjunto para ele, além de rodeados com queenzels, em sua mais feia face de homens-porco-espinho.
A porta do bar rangeu ao ser aberta, e um sino tocou alto no seu topo. Não houve olhos que não se virassem para ver quem entrava, e não houve ouvidos que não se eriçassem para compreender as palavras que entoaram para o guerreiro sobre o banco. Pois um meio-centauro veio caminhando em passos barulhentos, constituído em arrogância e luxúria em seu olhar arrogante, — bem evidente em suas vestes caras e no colar de ouro que recaia sobre o seu peitoral peludo à mostra, e o botão de prata da espada em sua cintura. Ora, todos os meio-centauros traziam espadas em seus cintos, e, se não isso, ao menos machados férreos em suas costas.
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As Viagens de Um Vagante Perdido
Fantasía"... Seus olhos eram afiados, seu coração era mistério. Para o além dos mares e das terras ele marcha, sem ninguém jamais saber para onde vai. Uma espada à cintura, poções ao cinto, uma máscara ao rosto, e um oceano de monstros a matar. Uma sombra...