Tresham, O Demônio da Água Negra

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           Ruas à frente, um pequeno bar de madeira velha o chamou a atenção. Era tarde de verão, o sol entrava veemente pelas janelas em laranja fervoroso, reluzindo o prateado da sua armadura cicatrizada. Todos os olhos caíram sobre ele, cintilando pelo forte reflexo que vinha da armadura; uma mescla de laranja e prata fundiu-se ao interior do bar. Um eterno minuto de silêncio se fez pela sua presença. Sentiu cada olhar; cada malícia, cada julgamento. Sua face escondida pelo pano verde-escuro o emanava um mistério perturbador para tantos olhos curiosos; o gorro negro cobrindo seus cabelos o dava uma atmosfera de entidade; sua longa espada à cintura roçava o chão e marcava sua passagem em pequenas fagulhas, junto a um ranger perturbador do metal sobre o solo pedregoso; sua capa azul-preta dançava levemente às suas costas pelo soprar distante do vento invadindo-se pelas janelas, e seus olhos cinza-acastanhados reluziam mais que o brilho do sol.

          Voltaram, os frequentadores, com seus murmúrios quando o seu primeiro passo ao balcão foi dirigido. Nem por isso deixaram de encará-lo; por onde passava olhares o seguiam num espanto emaranhado – olhar a ele os assustava, mas ao mesmo tempo não conseguiam deixar de olhá-lo.

         Caminhar para o balcão pareceu uma viagem de intermináveis anos, pesada pelos olhares, densa pela atmosfera inquieta das pessoas. Mesas eram espalhadas pelos arredores, circulada por seres de diversas espécies, estranhos e pegajosos; muitos até nojentos.

          Seu corpo era a verdadeira escultura do mistério. Um mistério tão único, que não houve um só ser que não desvendara sua identidade. Aqueles olhos enlameados em fúria não eram algo com que se confundissem. Sua imagem não passava de uma lenda, sua feição era uma sombra que ecoava pelos mares. Sua espada era conhecida por lambuzar-se com sangue de monstrengos, muitos dos quais aqueles ao bar se assemelhavam.

         Jamais ele os dava o privilégio da sua atenção, andando sempre reto, sem desvios, para o seu destino. Os poucos que o havia na frente saltavam para fora do seu caminho, seguindo-o com os olhos úmidos de temor.

         Quando chegou ao balcão, sua costa estava pesada pelos tantos olhares maldosos que o caiam. Os murmúrios cuspiam-se aos seus ombros e lambuzavam sua capa, desde a ponta até o fim do gorro, com seu veneno. As conversas foram voltando aos poucos, jamais no mesmo tom exacerbado de antes; palavras fingidas, sem fôlego, para mascararem sua verdadeira atenção sobre a sombra gigantesca que pairava diante eles: uma imagem grande e feia de um cavaleiro quebrado, repleto de cicatrizes na armadura.

        O balconista se estremeceu todo quando o viu olhando para ele.

        — Essência de dragão – ele ressoou. Seu cochicho era um trovejar grave se dissipando por cada centímetro do bar – Para viagem.

        Antes de chegar-lhe à língua, todas as letras da sua resposta afogaram-se no medo do balconista.

        — Q-Quantos litros? – o balconista o perguntou.

         No que ele respondeu:

          — O maior que tiver.

          Enormes bancos de madeira tinham-se em frente ao balcão. Nenhum deles do seu tamanho. Ao primeiro que sentasse, a madeira quebraria, e seu traseiro estaria ao chão em segundos. Seus pés permaneceram-se firmes sobre o chão, suas pernas esticadas com a armadura as vestindo com sua prata reluzente. Os olhos devoravam cada face à periférica. Não haveria moscas que o chegassem perto sem que as percebesse. A mão solta pendia-se perto da espada na sua cintura, prontificado para qualquer intrusão que o houvesse.

          — São duas honras, meu cavaleiro – disse-lhe o balconista. A garrafa lhe foi entregue com as mãos tremendo.

          O mascarado pegou sua bebida num movimento rápido que quase levou os dedos do idoso trabalhador junto com ela. Os cabelos grisalhos e a roupa de couro falso amarronzada em seu corpo sentiram o vento fétido dos seus golpes.

As Viagens de Um Vagante PerdidoOnde histórias criam vida. Descubra agora