Tresham não desanimou em seu movimento, e por isso ainda tinha a espada erguida conforme as palavras o vinham e sua mente se esforçava para compreender o que ouvira. O que de primeiro fez fora olhar do homem para os orcs — caídos sobre o chão e gemendo pelas dores nas costelas e ossos — e deles para a amalacã que, assim como ele, não entendia bem o que acontecia.
Em súbito, vendo que de nada adiantaria prosseguir em seu disfarce, o homem desfez da sua postura aquela elegância e sofisticação, e de repente, não havia mais sobre seu corpo ou sobre seu olhar aquela palpitação de valente, nem uma única gota de decência ou formalidade. A verdadeira face do homem vinha para seu corpo, e agora — no que há pouco parecia tão grande — tornava-se o ser mais ameno e displicente do beco, ainda que em estatura não fosse tão baixo quanto podia aparentar. Mas ainda havia esperança de qualquer conforto em seu ego, e não tardou para voltar-se caminhando para a mulher e começar a dizê-la em tons hesitantes e um tanto confuso:
— Ouça-me... Hã... Eu só... O que acha de sairmos daqui e retomarmos o...?
— De verdade — ela o interrompeu, sem demora —, eu não sei o que está acontecendo por aqui, e nem quero saber. — Tome — ela o entregou o guarda-chuva. — Bem que meu instinto nunca erra, você realmente parecia falar mais do que era. Adeus...
E caminhou para a chuva, permitindo que a tempestade inundasse seu longo cabelo dourado e o seu vestido de verde diamantino; um luxo, bem típico de uma espécie tão rica. O homem não soube outra reação além da decepção e de uma amargura tristonha que poderia ser vista de longe. Quanto aos orcs, estes apenas se ergueram, levando as mãos sobre os arranhados e as áreas doloridas que aquele guerreiro estranho e corpulento os fizera, sempre tentando tomar o máximo de distância possível dele. Tresham conseguia ser mais espantoso que os próprios orcs, e o fora uma surpresa considerável quando, de repente, viu não eles, mas o jovem e mirrado humano virar-se com fúria diante de sua presença e murmurá-lo:
— Faz ideia do quanto é difícil encontrar uma amalacã? Quem diabos é você?
Tresham estranhou a pergunta, pois havia tempo, muito tempo, desde que encontrara alguém que não o reconhecia. Isso explicava a falta de temor completa do homem em relação a ele. Talvez se ele soubesse, não ousaria falar daquela maneira, como quem dissertasse com um relés bêbado de bar. Logo ele percebeu que não havia perigo para confrontar, por isso guardou sua espada na capa, e o respondeu, com ênfase:
— Sou Tresham.
O homem paralisou diante do nome, olhando-o de cima a baixo; vislumbrou suas mãos pesadas, o seu tamanho descomunal... E disse:
— Eu sinto que você o falou com importância, por acaso seu nome deveria significar algo?
Tresham não sabia se ria ou se irava pela sua ignorância. Como assim ele não sabia quem ele era?! Um sentimento estranho assolou o seu coração de guerreiro lendário, um peso esquisito, um aperto em seu ego... Talvez nunca, desde que se tornara adulto, sofrera a loucura de não ser ninguém; de ser nada mais que um homem alto e mal-humorado. Talvez houvesse realmente andando para longe demais das suas terras natais.
Assim, em despeito, erguendo a voz, ele o frisou e disse:
— Quem é você... humano?
O homem tomou distância e disse:
— Quem sou não lhe diz respeito. Ora, onde já se viu um homem esquisito aparecer de repente, interromper meu encontro e ainda me falar com essa insolência...!
E de repente, as pupilas de Tresham se amarelaram.
Quando viu que um dos orcs mancava para perto, ele olhou para os demais da espécie, e perguntou ao homem:
— Esses três são realmente seus amigos?
— Talvez amizade seja algo forte demais para dizer, mas... por falta de palavra melhor eu uso essa, e... Por Morfêus, porque estou falando isso para você, isso não é da sua conta...
Palavras inúmeras surgiram do âmago mais profundo da mente perturbada de Tresham, tantas que nenhuma ele conseguiu dizer, tão entaladas ficaram umas sobre as outras. Quando foi se dar conta, já estava calado havia meio minuto, e o homem já se voltava para os orcs para amenizá-los da sua fúria.
— Sinto muito pelo infortúnio, rapazes — ele os disse, e logo removeu um apanhado de moedas de prata do bolso — algumas honras a mais para confortá-los, sim?
O mais alto dos orcs estava perante ele, a quem o homem oferecia a mão com as moedas e tentava, ao menos, sorrir. Mas o orc não estava nada alegre, ainda com uma linha fina de sangue escorrendo pelo nariz. Quando estendeu a mão e permitiu que as moedas caíssem entre seus dedos, ele as contou, e disse, com ênfase:
— Queremos mais?
— Mais! — o homem exclamou, em espanto. — Acabo de dizer que já estou dando mais do que deveria...
— Ainda é pouco...
— Por que não ameaçam uma adaga na minha garganta de uma vez e se declaram assaltantes...?!
— Não estava programado apanharmos de verdade. Era para fazermos os movimentos de sempre e fingirmos apanhar, aquela coisa — apontou para Tresham — não deveria estar aqui.
— Eu concordo, mas não é culpa minha...
— E com certeza não é nossa.
Logo o orc já se calava e pedia por mais do pagamento com um simples gesto de mão; sua mandíbula estava dolorida para falar sempre, sem pausas, e por isso se aquietava.
O homem se fez ofendido, e respondeu:
— Não tenho mais.
Mas orcs são orcs, independente do que façam, e logo os demais se juntaram um à esquerda e outro à direita do mais alto, e olharam juntos para o homem com tom ameaça. Ele soube, então, ainda que nada o dissessem, que não sairia vivo caso não pagasse. Mas o homem não se deixou mostrar medo, antes, simplesmente revirou os olhos em desdém, e logo se abaixou para remover o sapato do pé direito e o chacoalhar de cabeça para baixo. De dentro do sapato caiu um saco pequeno de moedas tilintantes, o qual entregou para as mãos abertas do orc líder, um pouco depois de vestir o sapato novamente.
O orc pesou o saco de moedas na mão, e não pareceu satisfeito.
— Ainda é menos do que desejo — ele disse.
— A menos que queiram minhas tripas — o homem o respondeu — estou seco quanto um deserto. E vocês me conhecem há um bom tempo para saber que falo a verdade.
O orc pensou em um pouco mais... e depois deu-lhe as costas.
— Por hoje, estou satisfeito — ele disse. — Adeus, humano, até uma próxima mentira.
— Adeus, sua coisa. E não vou dizer que foi um prazer fazer negócio com vocês desta vez.
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As Viagens de Um Vagante Perdido
Fantasy"... Seus olhos eram afiados, seu coração era mistério. Para o além dos mares e das terras ele marcha, sem ninguém jamais saber para onde vai. Uma espada à cintura, poções ao cinto, uma máscara ao rosto, e um oceano de monstros a matar. Uma sombra...