3- Diário de Edolon. O Mestre e a Tamareira

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(981 palavras)

Cheguei ao topo da montanha e fui recebido pelo Mestre, cujo semblante era agradável e convidativo.

Ele era um homem alto, de pele negra, com uma barba branca que escondia a boca, como se fosse a máscara da experiência. Usava roupas simples e elegantes, feitas de tecidos naturais, principalmente linho.

Antes que eu pudesse perguntar sobre se sabia quem eu era, ele me disse:

"Não sei quem és, mas sei que serás o que aprenderes.

Quanto a mim, posso dizer-te apenas que sou o mundo inteiro, habitando todos os sonhos.

.Em mim, os sonhos florescem e se tornam realidade.

Eu sou a fonte de toda a vida. Nas minhas mãos recolho música e solto vida em notas de harmonia.

As minhas mãos sou eu, e eu sou o meu violino."

A sua voz era intensa, ecoando como milhares de vozes em uníssono, produzindo notas musicais em harmonia. Ele fez-me vibrar, como se eu estivesse dentro de um sino. Fiquei sem palavras, sentindo-me entre o espanto e a loucura, sem saber o que dizer, optei pelo silêncio.

Quis acreditar que há uma dimensão mais profunda da existência humana que transcende as nossas emoções e pensamentos imediatos. Algo que acalmasse a confusão, que me afastasse das areias solitárias do deserto mental. Mas pode um homem que não se conhece a si próprio, iniciar uma busca por um significado mais profundo para a nossa vida? Uma busca por uma conexão com algo maior do que nós mesmos? 

Fui levado a um quarto pela empregada da casa, onde fiquei. No quarto havia um espelho com adornos elaborados de madeira que chamaram a minha atenção. Quando me aproximei, vi o meu reflexo numa superfície branca e vazia, como se o espelho refletisse apenas o meu corpo e um mar branco que não existia. Lembrei-me de ter tido a mesma sensação quando acordei na floresta, e sem pensar, cobri o espelho com um manto.

Não sei quem sou, não me reconheço, nem o raio do espelho me quer dar a imagem da minha existência... Que se passa neste lugar? Respirar fundo e olhar à volta. Felizmente é um lugar belo...

Uma casa de pedra no alto da montanha, seria um lugar de tranquilidade e isolamento, não fosse aquele silêncio que se apoderava de tudo. Construída em xisto, a casa tinha uma aparência sólida e resistente, capaz de suportar as condições climáticas adversas da montanha. O teto, feito de madeira escura e o chão de pedra, davam-lhe um ar acolhedor e rústico. As janelas eram grandes, permitindo que a luz natural entrasse e iluminasse o interior.

Com uma vista deslumbrante, ar fresco e limpo, a casa, era ainda cercada por inúmeras árvores de fruto, e algum cultivo de hortaliças era um lugar perfeito para desfrutar da natureza.

De entre as árvores de fruto, havia sete tamareiras que ainda não tinham dado qualquer fruto. Perguntei ao mestre, se já tinha comido tâmaras, ele acenou, dizendo que não, com a cabeça, e olhando depois para o céu, como se me quisesse dizer, que só Deus saberia se um dia as comeria.

Mas, ao olhar também com atenção, avistei um corvo, que voava a uma altura considerável, ao ponto de parecer apenas um ponto negro.

Com o mestre, aprendi a fabricar violinos em silêncio. Observando-o a moldar as formas, as cravelhas, e todas as partes de um instrumento musical, sem precisar de palavras. Os dedos dele eram a verdadeira música, moldando a madeira com tanta harmonia que parecia assistir a uma sinfonia.E acabei por fazer o meu primeiro violino. Sem saber o porquê o mestre ficou com ele. Talvez seja coisa de mestre, ficar com a primeira obra do aprendiz, não sei.

O Mestre era calmo e sereno, mas um dia, quando eu cortei uma folha de uma tamareira, que me tapava o caminho, causei-lhe uma agitação enorme. O Mestre pegou o ramo da minha mão e o colou na tamareira, com um cordel vegetal. Queria pedir desculpas, mas achei exagerada a reação do mestre. Então, olhei para cima, e vi cerca de uma dezena de corvos voando em círculos, o que me criou espanto. Usando gestos, o Mestre proibiu-me de me aproximar do seu violino, pois este estava partido. O violino que eu tinha feito, o meu primeiro violino estava agora partido.

E assim, passaram-se três semanas, e eu, o único aprendiz do mestre, cresci e evoluí como artesão, talvez até como ser humano. Aprendi a ver a beleza na simplicidade e no trabalho árduo. Aprendi a ter fé e esperança no meu próprio sucesso e ser grato pela oportunidade única de ter sido escolhido como aprendiz do mestre. Não fosse o silêncio, e os corvos que sujavam o ar, estaria feliz.
Embora durante o dia, o ar, fosse perturbado pelos corvos, o resto era tranquilo.

Mas à noite, vinham os problemas. Jantávamos em silêncio com a ajuda de uma criada muda, que preparava as refeições como se adivinhasse o que eu gostaria de comer. Apesar da vontade de gritar, mantive a boa educação e guardei o silêncio. Quando o silêncio é opressor, o grito da alma se faz mudo. O dia era invadido pela motivação dos pensamentos empurrados pela beleza da natureza, embora não se ouvisse nenhuma voz.  

A solidão e o silêncio empurra-nos para dentro de nós, nos confrontando com os nossos medos, anseios e limitações. O mundo era o espelho do vazio dentro de mim. Mas nem o espelho se queria revelar.

Felizmente, um dia pela manhã, ao olhar para a tamareira, vi que a folha se tinha curado. Com alívio, presenciei que os corvos tinham desaparecido e corri para casa, e guardando uma distância respeitosa do violino do mestre, reparei que este, estava inteiro e lindo como sempre. O momento, da cura da folha de tamareira em simultâneo com o conserto do violino, deu-me esperança. A ideia que se pode superar obstáculos, encontrar a cura e a restauração mesmo nas dificuldades da vida, deu-me alento para recuperar as memórias.

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