15- Luxúria -A caçadora de almas

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(1798 palavras)

Noite de lua cheia. Nuvens rendilhadas trespassavam, aos poucos, a lua.
Do 5º andar sobressai da escuridão um cigarro aceso. Uma passa, um rosto impercetível, olhos que refletiam a cinza em rubro do cigarro. Olhos que se dirigiam ao outro lado da rua, um quarto, vidros transparentes, luz acesa, dois corpos entrelaçados.
........

( O Mestre vendo que não havia nenhum som, colocou-se atrás de Edolon, pondo as duas mãos na cabeça deste, uma voz surgiu no espelho entrelaçada com as imagens da Dama de Vermelho. Pode ali, Edolon, com a ajuda do Mestre, dar som às imagens refletidas, pela voz dos pensamentos de Marta, a Dama de Vermelho.)
......

Um homem nu, olhos fechados, impulsivamente descarregava raivas, medos e insucesso no ventre de Marta. Gemidos selvagens, talvez algum carinho, lembrando alguém... talvez o prazer como cura para frustrações.
Marta deitada sobre lençóis, de olhos bem abertos, olhava o teto branco. Não precisava de concentração para emitir gemidos que simulassem prazer. Todos os sons estavam mecanizados, assim como os gestos, gestos sensuais de todo o corpo. Apenas guardava uma coisa para si, os olhos, não venderia os olhos por nada. Se vendesse os olhos venderia a alma.


Olhava o teto branco tentando levar a brancura para a sua mente, tudo branco, a cor da pureza. Não era pureza que buscava, era esquecimento do momento, era esquecer a dor de sonhos perdidos. Toda ela era sonhos por conquistar, muitos deles em memórias esquecidas. O que interessa? O que importa quando você é um repositório de raiva, um recipiente para os outros reciclarem os seus infortúnios... Que raiva! Quanto menos se quer sentir mais se pensa. Por que será que a mente não se desliga simplesmente?... Dois anos, dois anos e conseguiria todo o dinheiro que precisava para abandonar esta maldita profissão...escravidão, escravidão é o que é, escravidão da alma. É assim a vida dos tristes pensam sempre no futuro. De todos os sonhos que tinha, restava apenas um, o sonho de abandonar esta vida com alguma segurança financeira. E agora, esses sonhos estavam em perigo, devido ao aparecimento de Giovanni.


O cliente saiu, um cliente certo como outros que tinha, todos eles também eram poços de desilusões, muitas vezes iam ter com ela, para encontrar um pouco de prazer ou tão-só uma voz que os afastasse da solidão...só ela não tinha nenhum prazer, apenas o prazer da aquisição do dinheiro.

Marta ficou sozinha, uma insegurança estúpida remoía-lhe a mente, sentia-se invadida por um olhar, nunca tinha tido esta sensação, nem precisava de ter, nunca se tinha importado que lhe espiassem o corpo. Desta vez diferia não era ao corpo que esse olhar, que com certeza era só impressão, se dirigia, mas um olhar que a penetrava, um olhar que lhe despia a alma.
Assustou-se, uma campainha tinha-a apanhado desprevenida. Quem seria? Não espero nenhum cliente, só atendia clientes com marcação antecipada. Tinha trancado a porta de todos os sonhos. Porquê abrir esta? Não existe inocência quando o medo domina, sentia-se nua, vestia um corpo transparente feito de pele e osso, e um robe sem qualquer poder para esconder a alma. Óculos de sol...óculos de sol era o que precisava. Esconde os olhos. Abriu a porta.

Um homem! Gabardina e chapéu cinza-claro, luvas pretas e um ramo de rosas. Estendeu o ramo a Marta, esta pegou-lhe instintivamente. O homem lançou apenas um olhar, um breve sorriso, antes de Marta agradecer já tinha virado as costas.
Marta colocou as rosas numa jarra e se encontrou naquele instante desconhecido. Um sorriso abriu-lhe os lábios num leve prazer que soltou a imaginação. Daquele intervalo de tempo sobrou um olhar que a trespassou, um rosto de que não tinha lembrança. Era assim que via aquele rosto, um rosto sem contornos, ela que sempre fora boa a recordar caras... e por momentos senti-se só. Os sentidos não se dão com a solidão. Por isso tinha desaprendido de sentir, mas agora não conseguia evitar e gostava, sentia-se viva. Olhou a lua da janela, o silêncio do luar entrou-lhe na alma. Por que é que ele não tinha dito nada?

Uma voz não chega para serenar um corpo entregue aos ventos do tempo. E tentou recordar-se de um corpo de outrora, mas a mente esquece-se, restam os sonhos perdidos. Queria abrir as portas aos sonhos, sonhos que as palavras não conseguiam demonstrar porque ficavam amarradas no tempo. Que interessa uma vida sem? Que interessa amealhar pequenas fortunas, se tudo que se acumula são infortúnios? Que interessa o dinheiro se não posso viver com prazer? Fechou as janelas e deitou-se na esperança que durante o sono encontraria sonhos antigos. Só se perder nos sonhos encontraria o caminho feito de desejo. A força dos sentidos são os trilhos do sonho. A solidão não é para os sentidos, é para o pensamento e isso não é viver com o corpo... é a prisão da alma.

Adormeceu. Sonhou com todos os homens a quem tinha vendido os seus serviços, muitos dos quais não se lembrava, e de todos tiravam prazer que na realidade não tinha sentido. No fim do sonho todos os homens fundiram-se num só, no último que a tinha visitado. Acordou assustadoramente húmida, ainda ébria de sonho, sentia que amava e desejava aquele homem de rosto indefinível. Agora via porque não se gravava dele, de qualquer traço do seu rosto, ele era todos os rostos, era todos os homens que estranhamente repugnava, mas viciante mente almejava essa união.

Um novo fim de tarde, princípio da noite, aconteceu. Marta atendeu os seus clientes com olhos fechados tentando absorver todos os obscuros desejos lascivos, raivas, obscenas exibições.... Não precisou simular sorrisos, o seu encanto era natural, mas não escancarou a sua sinceridade para não afugentar clientes. Espreitava-lhes a alma, agora que tinha deixado de esconder a sua via a dos outros. Se foram outros tempos talvez vomitasse de nojo, agora não, agora rasgava as trevas como se de uma viagem se tratasse.

Após atender a todos os clientes, uma campainha tocou novamente. Abriu-se a porta, entrou o estranho homem. Beijou Marta, feito amor intensamente. Marta sentiu um enorme prazer, orgasmos eletrizantes que lhe extraíam todas as frustrações, todos os medos, todas as raivas, os mais dissimulados segredos. Sentia toda a sua alma espionada, mas não se importava, agora tinha a alma vestida de prazer, roupas coloridas de vida. O delírio do prazer acabou e o homem foi embora sem dizer palavra.

Marta cada vez mais abominava os seus clientes, mas agora empenhava-se em ajudar outros, não por dinheiro, mas sim para eles extrair todas as sórdidas solidões, todos os esgares odientos e principalmente a raiva e a inveja. Os clientes sentiam um enorme alívio na cama de Marta, mas também pressentiam algo sofrido, esperando que ela descobrisse o grande terror que lhes habitava na memória, os reles pensamentos desconfiados. Mas o vício impulsionado pelo prazer era muito mais poderoso que os sentimentos desalmados. Também Marta estava viciada, precisava dos seus clientes para depois ter o prazer que tanto ansiava com o homem estranho.

Depois de uma noite de sexo desenfreado. O homem falou: Eu sou aquele que vive da raiva, do ódio, medo, matança, das infames ambições... E neste momento tu és como eu, precisas dessa sórdida morbidez da alma para viveres como um vampiro precisa de sangue, eu sou Mefistófeles. O verdadeiro inferno existe na vida, não te preocupes que nunca nos faltará comida, por mais fome que a gente tenha os humanos são uma fonte inesgotável da abominação e luxúria que é o nosso alimento.

....

No, 5.º andar, o cigarro, comia o filtro, nos lábios de Marta, ao lado um frasco de comprimidos para a esquizofrenia, fechado. Marta pegou nos comprimidos, e num lançamento, atirou com os comprimidos para o balde de lixo com papéis amontoados. Na parede, por cima do balde do lixo, podia-se ver um calendário. Decorria o dia 8 de janeiro de 2048, o relógio da parede marcava 11:59 minutos. Marta vigiava-se, como se esperava aquele momento, movendo-se até ao calendário e contornando o número oito, como os dias atrás, presumindo assim, que estaríamos no dia 9 de janeiro.

Um último, pensamento audível, surgiu na mente de Marta, "Tenho que acabar com a raça do Giovanni". Enrolou o cabelo, na coroa da cabeça, e de cima da mesa tirou um gancho, que mais parecia um punhal, e prendeu o cabelo com ele.

.....

O espelho deixou de projetar as imagens, agora via-se apenas o reflexo do salão, de Edolon, de olhos a encandearem uma luz branca e desfalecer, o Mestre a segurá-lo, enquanto caía. Edolon, desmaiou, e o espelho se evaporou. Triny, se aproximou rapidamente, e levou Edolon, para o quarto desta, para poder recuperar as forças.

Niobe disse a Cyph que iria passar pela esquadra para ver se já havia mais relatos sobre a Dama de Vermelho. Niobe era um agente policial, detetive, da esquadra local.

Agora sabia mais sobre Marta, a Dama de Vermelho, agora compreendiam melhor o porque das vítimas de Marta se tornariam, zombies. Neste vale de sombras e dor, Marta, a Dama de Vermelho, surge como uma emissária impura. Enfeitiçando as suas vítimas com ardor. Os seus atos malditos são conhecidos, deixando um rastro de zumbis sem alma. Corpos que não passam de marionetas, preenchidos apenas com pensamentos lascivos.

Não são monstruosos como os do cinema. São vítimas da perversão de Marta, zumbis depravados, com olhar vazio, que só pensam em sexo, mesmo sem alma. Andam por aí, sem consciência ou vida, com língua de fora e corpo mole. Mas quando, algum deles, vê alguém do sexo oposto, anda mais rápido em busca de uma chance. Não oferecem perigo aos outros, pois são flexíveis e desequilibrados. Qualquer contacto defensivo os derruba, deixando-os imóveis e impotentes. Mas seu número cresce a cada dia, e Marta ainda está a iniciar. A sua maldade não tem limites. Ela segue, sem hesitar.

O que é essa Dama de Vermelho, que assombra essas terras de sofrimento? Será uma entidade maligna? Ou uma criatura de outro firmamento? Talvez seja a encarnação da luxúria. Ou um avatar do mal na sua forma mais pura. Mas uma coisa é certa, a maldição de Marta, é uma chama impura que aflige todos.

Cyph, ao ver Niobe a sair, já na porta do salão, perguntou a Niobe, se não era melhor, contactar o Apolónio e o Dionísio. A resposta de Niobe foi afirmativa. Embora em Cyph o pensamento mais persistente era, como se pararia Marta, e se esta estava ao serviço do ser a que chamavam Corvos, e tudo indicava que sim, toda a ajuda seria necessária. Não gostava de Edolon, mas tinha que reconhecer, que mesmo sem qualquer treino, Edolon, tinha um poder extraordinário.

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