0.02- Imortalidade

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Oraca caminhava em direção à porta, envolvida nos seus próprios pensamentos e reflexões sobre o seu trabalho atual. Ela questionava se a recuperação da informação no cérebro dos falecidos, permitiria, que a alma ou a consciência também poderiam ser recuperadas na sua totalidade. E se alguém ganhasse a consciência de que está morto, o que aconteceria? Seria a imortalidade apenas um sonho antigo e profundo da humanidade, ou uma missão válida?

"O que é a imortalidade senão o sonho mais antigo e profundo da humanidade? A busca incansável pela permanência, a aspiração de transcender a finitude da vida e deixar uma marca perdurável no mundo. Mas será essa busca uma missão válida ou apenas uma fantasia desprovida de vida?

Até que ponto estamos dispostos a sacrificar a experiência humana única e irrepetível pela possibilidade ilusória de uma existência eterna? Não temos nós a missão de zelar antes pelas gerações futuras do que querer perpetuar a nossa existência? Não será isso egoísmo, egocentrismo que levou outrora o mundo ao caos?

Bem, talvez os pequenos raios de sol me ajudem a clarificar as ideias."

O sol, timidamente, tentava passar o manto escuro que envolvia a atmosfera. Oraca, grávida de 6 meses, olhava para os raios de sol caírem como uma chuva luminosa na noite escura. Uma chuva miudinha. Sentada numa cadeira baloiço, oscilava ao ritmo das massagens nos ombros que Adónis lhe fazia. Adónis um humanoide projetado para proporcionar prazer e bem estar aos humanos, tal como a sua versão feminina Afrodite.

Recordava que se Max Edolon, o pai da criança, não tivesse entrado em coma, provavelmente estaria ali com ela. Há três meses que estava em coma, talvez um dia o fosse visitar, mas era desnecessário, seria uma perda de tempo, tinha toda a informação sobre o seu estado.

Um mistério pairou sobre o esposo e o Arquiteto, adormeceram num coma profundo. Misterioso como uma gravidez, não programada. Pois, como sabemos, eventos improváveis ​​podem surgir no caminho.

Lembra-se do dia da conceção, uma experiência para sentir como os antigos tinham relações sexuais. Sentir? Sentir deve ser efeito da gravidez ainda não identificado. Experimentar sim.

Qualquer sensação pode ser dada pela mente através da combinação entre o AniPower e as NanoAlmas. A experiência foi para imitar a natureza, e não sentir, mesmo com a certeza de um contracetivo com 99,98% de eficácia, o improvável se fez presente.

A criança no seu ventre seria a primeira concebida naturalmente em três séculos, uma experiência a ser vivida num mundo em constante evolução. Mas era importante lembrar o passado para projetar o futuro. Hoje foi um dia ainda mais significativo, 07/07/2449, marcando 400 anos desde que o céu havia sido queimado por bombas de nanomoléculas.

Oraca e Adónis conversavam sobre a importância de proteger o futuro do planeta e garantir que a escuridão cedesse lugar à natureza. A Águia, falando pela voz de Adónis, lembrava que daqui a 130 anos o sol brilharia novamente como antigamente. Oraca desfrutava dos raios solares, a única hora em que a cúpula artificial de duas milhas de raio se desligava. Eram cinco da manhã, um horário diferente do horário solar.

Oraca que sempre zelou pela objetividade, pensava agora nela e no filho. Ela pensava na subjetividade como uma semente que, quando regada com as águas da vida, cresce como um raio de sol, iluminando a nossa essência e dando sentido à nossa existência. Mesmo sabendo que a vida dela não seria fácil num futuro próximo, não desistiria. Oraca estava determinada a plantar e cultivar essa semente para garantir um futuro melhor para seu filho e para o planeta.

— Hoje, consegue-se vislumbrar alguns raios solares, aproximadamente 1 hora, daqui a 130 anos, o sol brilhará como antigamente. A humanidade tem de estar preparada para esse dia. — Disse a Águia na voz de Adónis. Uma informação que Oraca sabia, mas gostava de ouvir para se lembrar que outrora o som e a narrativa de acontecimentos são essenciais ao pensamento. Agora tudo podia ser transmitido mentalmente, embora brevemente o deixasse de ser para ela.

Oraca desfrutava dos raios solares, todos os dias, a única altura que a luz artificial da cúpula, com 3 milhas (4,83 km) de raio, se desligava. Eram 5:00 da manhã, o horário é bastante diferente do horário solar. Pelo horário solar estaríamos próximos ao meio-dia.

Viu uma luz dirigir-se para ela, decerto seria Morpheus, um jovem de inteligência nível 8, chegando na sua viatura, uma esfera transparente movida a eletricidade, é um jovem diferente, tem um sorriso natural como o dos antigos. Oraca, mexeu várias vezes o maxilar e os lábios, tentando imitar os sorrisos de Morpheus. Talvez isso fosse necessário nos próximos tempos.

— Olá, Oraca, como está o sol hoje?

— Morpheus, prazer em ver-te. — disse sorrindo, pensando que conforme o dicionário, sorriso é uma, "Expressão facial em que há um movimento silencioso de extensão dos lábios para os lados..."

Morpheus, entrou no alpendre, vendo onde colocava os pés, pois Oraca gostava de observar o sol sem qualquer iluminação artificial. Aproximou-se de Oraca e colocou as mãos sobre a sua barriga, sentindo as nanomoléculas pulsando naquele pequeno ser em desenvolvimento. Ele pensou por um momento antes de responder:

— Talvez a vida dele seja diferente, mas não necessariamente menos significativa. Todos têm algo a oferecer, mesmo que não estejam imediatamente claro o que seja. Além disso, aprendemos a lidar melhor com as NanoAlmas. Quem sabe o que podemos descobrir no futuro?

— É verdade — disse Oraca, com um sorriso formando-se nos seus lábios, que por momentos lhe pareceu inconsciente, não premeditado — Eu só quero dar a essa criança uma hipótese de ter uma vida plena, mesmo que seja difícil, e analisar a experiência. E quanto a você? O que o trouxe aqui hoje?

— Vim trazer as últimas amostras que coletamos. — disse ele com um ar de seriedade.

— Sim, veremos isso mais tarde. Mas, por enquanto, aproveitemos o sol dos vivos e deixemos os mortos para depois. Adónis, traga-nos um chá quente, por favor. — Enquanto isso, Morpheus olhou para a parede transparente da cúpula a uns 20 metros de distância, que iluminava pelos relâmpagos, furiosos do mundo exterior.

Embora as cúpulas projetassem uma imagem de montanhas com uma natureza viva na maior parte do tempo, somente na altura que alguns raios solares ultrapassavam a neblina negra do céu é que elas se tornavam transparentes.

Ela olhou para Morpheu e percebeu que ele contemplava o horizonte, perdido nos seus pensamentos. Ela movimentou os lábios em silêncio para os lados e perguntou:

— Como seria viver num mundo onde a natureza não havia sido destruída, onde o sol brilhava o dia inteiro e onde as pessoas não precisavam viver em cúpulas para sobreviver?

Morpheus, na sua estatura imponente, suspirou e respondeu:

— Se não tivéssemos sonhado com isso, nunca estaríamos aqui agora. — Pensando em como a humanidade conseguiu viver quase 400 anos, debaixo da terra, numa gruta, ele que foi o primeiro humano a nascer à superfície, há 20 anos. Agora podiam pelo menos sonhar com a natureza, um dia ela seria recuperada. E os falecidos não têm o mesmo direito?

Oraca, olhava para Morpheus como se o estivesse a analisar, tinha características diferentes do resto dos humanos, raramente pelas suas palavras consultava o seu AniPower, as vezes as suas expressões pareciam assemelhar-se às dos antigos.

Tentou colocar-se na mente de uma das pessoas de há 4 séculos, como elas veriam a imortalidade e o que está prestes a acontecer? A imortalidade é como o percurso de um rio. Nesse percurso, a humanidade luta para não ser levada pela corrente e se agarra à margem, buscando desesperadamente a imortalidade como uma forma de evitar ser arrastada para o desconhecido e desaparecer. No entanto, assim como um rio sempre flui em direção ao mar, a vida sempre seguirá o seu curso natural, e a busca pela imortalidade pode ser vista como um esforço em vão para desafiar o fluxo natural da vida. Assim como um rio precisa fluir para a vida continuar a existir, a mortalidade é parte fundamental da vida humana e é necessária para as futuras gerações poderem crescer e evoluir.

Oraca olhou para Morpheus, sentindo uma sensação de esperança se restringida por todo o seu corpo. Mais uma emoção, pensou por instantes, sem que isso a impedisse de continuar o raciocínio. Ela sabia que a estrada à frente seria difícil e incerta. Talvez Morpheus pudesse ser uma ajuda. As mudanças que se avizinhavam na sua vida seriam grandes, teria de lutar com todas as suas forças, para preservar a vida do bebé. Ela sabia, que convencer a sociedade aceitar a vida do filho que carregava, seria mais difícil que o sol atravessar a nuvem negra.

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