1 LUCAS VERDELHOS

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LUCAS JOGOU ÁGUA NO ROSTO E TOMOU FÔLEGO. Diante dele, o espelho do banheiro refletiu sua negritude e também seu cansaço. Nem em seus piores pesadelos ele esperava chegar aos 15 anos naquela situação, perseguido por se quem era; oásis preto num oceano de mármore e de alunos brancos (ou autodeclarados brancos). Enxugou o cabelo, deu uma penteada, tentou sorrir para o Lucas espelhado. A imagem não retribuiu o sorriso. No olhar, era como se tivesse uma faixa de LED que emanava apenas um nome: Cléver Fauller, Cléver Fauller, Cléver Fauller. Era uma incógnita como alguém podia ter tantos privilégios, ter a melhor educação que o dinheiro podia pagar, professores qualificados, viajar o mundo, e ser tão antiquado e de mente cinzenta.

"Cinza falseado...'', pensou.

Cléver Fauller vivia mentiras mil, mas Lucas, isso ele sabia, só possuía uma mentira que estava disposto a manter bem enterrada, esquecida, obliterada. Diferente do seu opressor, não iria transformar cicatrizes em chicotes para agredir os outros. Por isso, a escrita era um lugar onde vomitava angústias, anseios, sonhos e verdades.

''O papel não julga quem se debruça sobre ele''. Lembrou-se da frase, mas ela não foi suficiente para esconder uma verdade: Lucas nunca havia terminado nenhum dos seus projetos literários, como se os punhos estivessem atados com cordas trançadas com os julgamentos que escutava dia após dia.

Afastou o pensamento. Em breve, prometeu, cuidaria disso. ''Em breve, sim...'' Terminou de se arrumar no mesmo instante que o sinal de término do intervalo tocou e saiu do banheiro.

— Meu Jesus de Nazaré, pensei que cê ia fazer casa nesse banheiro! — Evandro parou de coçar a barbicha que já nublava seu queixo e deu dois tapinhas nas costas do amigo. — Olha, não liga pra eles, não, Lucas. Já te avisei que o Cléver e aqueles outros só querem é aparecer.

— Pois é, Lucão — Otávio inflou o peito, olhar perdido no horizonte —, chegará o dia, não tarda, creia, em que os aparecidos desaparecerão tragados pelo suor da terra que cobre este chão...

Domingas derramou o restante da água que bebia na cabeça do amigo. Lucas sorriu ao olhar para ela, mas desviou a atenção para os próprios cadarços. Fingiu que precisa amarrar.

— Tá, Camões, chega de espetáculo. O segundo sinal já vai tocar, gente. Vamos pra sala. E Lu, o Vandro tem razão, né? Não vale a pena ficar dando atenção pro que o Cléver fala ou deixa de falar. É exatamente isso que eles querem: que tu fiques se escondendo no banheiro. Esse pessoal se alimenta do incômodo dos outros. Quanto mais a gente demonstra ficar chateada, mais eles se acham fortes para agredir ainda mais.

— Falar é fácil. Vocês três não são um alvo pra eles.

O trio cruzou os braços, calados diante do amigo. Otávio, mais baixo do quarteto, 1,40m de altura, roliço e de pernas curtas; alpinista de rodapé, rolha de poço, minion. Domingas, manchas pelo rosto e corpo devido ao vitiligo; vaca malhada, pintosa, mapa múndi ambulante. Evandro, garoto transgênero, gay, transicionando diante dos colegas; falso macho, mulher machinha, sapatão de barba. E Lucas, negro retinto, meia bolsa de estudos graças à tia ex-funcionária da escola, órfão, pai e mãe desconhecidos; carvão, nariz de bola, macaco sem pai.

— Tá, foi mal. Saiu sem querer. Estamos todos no mesmo barco, eu sei...

— Hum, cê nunca mais me fale uma coisa dessas, pior! — Evandro o abraçou e instigou a continuarem em frente. — A gente navega esse mar juntos e juntos vamos ficar independente do que aconteça.

A garota pigarreou.

— Ou não.

— Por que esse ou não pra cima de mim agora?

— Bom — Otávio se adiantou, empolgado —, semana passada a gente foi ao cinema e você não foi porque tinha um encontro, lembra?

Vandro abriu a boca e fechou várias vezes. O segundo sinal tocou. Ao fundo, havia uma algazarra de risos vinda da sala de aula.

— Quem foi que disse isso pra vocês? Tão doidos?

— Otávio e Domingas têm razão mesmo. Tua mãe disse que tu foste encontrar um menino, mas nem ela sabia quem era ou onde era.

Pela escada, viram Lucimar, a professora de Matemática, subir, bolsa à tiracolo, vestido vermelho combinando com as bochechas de Evandro.

— Vocês três vão atrás de mamãe agora, é? Tô vendo mesmo. Só me faltava-me essa. Tudo doido, tudo doido... ­— e saiu marchando em direção à sala.

Os outros o seguiram, rindo do amigo e de seus mistérios amorosos. Aproximavam-se da sala quando um menino do quarto ano veio na direção contrária a deles. A criança passou pelos três, parou, girou no próprio eixo. Franziu as sobrancelhas e apontou para Lucas.

— Ei, eu te conheço!

Lucas se virou para aquele dedo apontado, sentiu o mundo girar, fingiu tranquilidade. Tentou brincar.

— É mesmo? Quer um autógrafo?

Domingas e Otávio riram. Preparavam-se para seguir caminho quando o outro insistiu.

— Conheço sim! Minha irmã tava vendo um jornal antigo e eu juro que vi tua foto. Eu te conheço!

Lucas ficou sem fala, deu um passo para trás, vista turva. Domingas o segurou para que não caísse. O pequeno abriu a boca para falar algo quando Otávio foi mais rápido.

— É, o nosso Lucão aqui é igual ao Luccas Neto, guri. Até eu confundo: branquíssimo, barbado, rico e jeitoso. São gêmeos — e empurrou a criança em direção à escadaria. — Vai pra tua aula, vai, filhinho. E para de beber tanto iogurte, homem! — gritou para o pequenino. — Tá vendo coisa demais!

A professora olhou do menor para os outros três parados no corredor e ergueu uma sobrancelha.

— Mais confusões, gente?

— É uma invasão do quarto ano, professora — Otávio correu para ajudar a senhora com os livros e a bolsa. — Estão cada vez piores, os coitadinhos. É o que eu digo: essa juventude está cada vez mais incorrigível. Aviltantes, eu diria.

E prosseguiram naquela conversa. Passos atrás, Domingas e Lucas se olharam e largaram-se as mãos. Em silêncio, caminharam em direção à sala, mas não chegaram a entrar. A balbúrdia que ouviam de fundo ficou mais nítida assim que chegaram à porta. Alunos em pé, a professora aos berros perguntando algo, risinhos, celulares a posto tirando fotos do quadro. Sentado feito um faraó em uma carteira posicionada na direção da entrada, Cléver era um rei-sol capitaneado por seus súditos, excitadíssimos ao verem Lucas encarar sua majestade.

— Eu vou perguntar de novo — a voz da professora Lucimar sobrevoou o caos estudantil. — Quem escreveu isso?

Só aí, Lucas prestou atenção ao quadro atrás dela. Primeiro, não entendeu o que lia devido aos passos da professora de um lado para o outro do tablado, esbravejando feito político em tempo de eleição. Quando ela decidiu parar em um ponto para fazer mais ameaças, ele viu a frase, escrita em azul, dentro de um coração:

LUCAS + JORIM = CARVÃO COLORIDO

Abaixo dela, em tinta rosa, alguém acrescentou:

LUCAS + EVANDRO = GRAVIDEZ

Acima das frases, da gritaria dos alunos, da pergunta da professora e do incômodo no rosto de alguns, estava o risinho de deboche de Cléver Fauller, braços cruzados, olhar azedo, rosto tatuado com ódio gratuito.

O rei-sol atacara novamente.


Olá, tudo certo? Muito obrigado por teres escolhido embarcar comigo na história do Lucas. Talvez, confesso, não seja aquela história de ficção adolescente que vai fazer você sorrir e relaxar. Porém, isso eu garanto, esta é uma obra de reflexão sobre assuntos reais, que estão aí, ao teu lado, mesmo que você não os veja. Sendo assim, como faço em qualquer dos meus livros, peço que você confie em mim, dê-me a mão para que caminhemos juntos por revelações que vão te surpreender. Seja bem-vinda, seja bem-vinde, seja bem-vindo, ao mundo real dos Lucas Verdelhos que gritam por ajuda.

Lucas Verdelhos e a Revolução WattpadianaOnde histórias criam vida. Descubra agora