17 INCÊNDIO (parte 1)

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POUCAS VEZES LUCAS CHEGARA NA DAMARIANA TRANQUILO, LIVRE DE RECEIOS. O medo já virara um companheiro constante, um anexo de quem ele era. Porém, naquele dia, o medo que sentia não tinha nada a ver com bullying ou com olhares de esguelha. Era algo mais profundo, mortal, cortante. Havia começado já no sábado, quando chegou do cinema. Foi abrir a porta para ser recepcionado por uma frase aterradora:

— Lucas, precisamos conversar.

Cara a cara, tenso, encontrou energia e jurou para a tia que ele não tinha contado para ninguém sobre a conversa sobre o passado da professora Regiane. Se Miridéia acreditou ou não, a dúvida pairou no ar. Mas o estrago estava feito: um clima de desconfiança se instaurou entre eles dois.

Somado a esse sentimento que o perturbou durante todo o fim de semana, bastou pisar na entrada da escola para imaginar Isaú Fauller chegando com um exército de advogados para cima dele. Não aconteceu. E, pelo que percebeu, mesmo que acontecesse ninguém ali tomaria conhecimento.

O hall de entrada estava cheio como sempre e silencioso como nunca. Alunos se dividiam em grupinhos, os olhares fixos nas telas dos celulares, atenção à leitura de algo como se todos tivessem sido convocados para fazerem o ENEM dali a algumas horas. Quando ele avistou Domingas, Evandro, Otávio e Lucy, correu para onde estavam, mas mal teve tempo de dar "bom dia". Um burburinho tomou as rodas de conversas e cabeças se viraram quando o rei-sol surgiu, pavoneante, mas com uma expressão dúbia no rosto.

Lucas não conseguiu identificar se era triunfo ou raiva.

Cléver parou no centro do lugar e alteou a voz. Até os porteiros e os funcionários da cantina, da faxina e da jardinagem se aproximaram para escutar.

— Eu só quero dizer aos meus colegas que acham que isso aqui é filme de super-herói que as coisas que fazem têm consequências. Para quem quiser saber (ou não) o meu pai acabou de demitir a professora Regiane. E — olhou para vários rostos, degustando o prazer de possuir aquela informação quentíssima — o professor Bélis por contribuir com esse tal perfil no Wattpad.

Otávio se mexeu como se quisesse falar, mas Evandro segurou sua camisa e o impediu de cometer uma besteira das grandes. Cléver sorveu o ar de surpresa das pessoas e prosseguiu, o peito ainda mais inflado.

— Para quem não sabe, o querido professor Bélis tinha uma briga com a professora Regiane há muitos anos por causa de um curso de Mestrado que ela teria feito no lugar dele. Portanto, foi aí que o meu pai deduziu que ele aproveitou esses textos para se vingar. O Bélis só foi um velho burro ao pensar que o Conselho não descobriria que era ele o tal amigo da Regiane-pedófila.

Lucas percebeu que um dos porteiros ficou pálido, mas, assim como Otávio, foi contido pelos colegas. A professora Regiane, como Miridéia enfatizou, era muito querida entre todos da escola.

— Agora, eu só quero avisar que o meu pai, o Conselho e os advogados da escola estão empenhados em pegar o aluno que inventou essa palhaçada toda. Ou — e virou-se para encarar os quatro colegas — os alunos por trás disso tudo.

O quarteto não conseguiu esconder o susto.

***

— ELE NÃO TEM PROVAS CONTRA NÓS — Otávio andava de um lado para o outro. — E nem pode provar que somos nós. Aquela olhada dele pra cima da gente foi só efeito de cinema.

Estavam em um canto isolado da biblioteca, famintos, mas sem coragem para encarar o refeitório. A escola pululava com o falatório sobre os últimos acontecimentos e quem seriam os responsáveis. Virar um corredor ou entrar em um banheiro era correr o risco de tomar uma teoria na cabeça. A laje, sabiam, seria melhor, mas tiveram que dar um perdido em Lucy após ela ter desconfiado de alguma coisa na atitude do quarteto. Disseram que a reunião seria lá, mas foram para a biblioteca.

— Olhada de cinema, olhar de verdade, olhadela de morte, seja lá o que for, o Cléver não ia falar aquilo se não estivesse certo do que disse — Domingas ponderou.

— Vocês acham que o que ele disse pro professor Bélis naquele dia, lá na sala, tem alguma coisa a ver com isso tudo da professora Regiane?

A garota confirmou.

— Eu tenho certeza que sim. É por isso que eles mantêm esses professores. O objetivo é ter como manipular o que cada um faz ou diz na aula. E o Cléver deve ter descoberto isso de algum jeito.

Evandro estremeceu, Otávio fechou ainda mais a cara.

— A gente devia era aproveitar essa raiva pra contar uns podres dele no Wattpad, isso sim.

— Cê tá doido? Seria o mesmo que escrever "Nós somos o Divulgador" em camisetas e sair pela escola.

— O Vandro tem razão, Otávio. E eu concordo com a Domingas que ele deve saber de muito mais coisa. O melhor agora seria a gente dar uma pausa. Ainda mais pra ninguém se empolgar e sair de novo fazendo um texto perigoso como aquele.

Bingo. Chegaram ao ponto crucial da questão. Domingas pigarreou.

— Olha, a gente passou o domingo discutindo isso e eu reafirmo: não tem mais importância quem foi que fez esse texto, tá certo? Está feito, acabou, agora é encarar as consequências.

— Que não vão ser poucas... — Evandro esfregou as mãos como se a temperatura tivesse caído.

Lucas olhou para ela.

— Tu quer mesmo dar um tempo?

— É o jeito. Gente, o que temos que fazer agora é um acordo de silêncio.

Otávio se remexeu.

— Fala sério! A gente passa a vida silenciado, começa uma revolução e agora voltamos ao silêncio? É isso mesmo, produção?

— Otávio, é como o Vandro disse: as consequências não vão ser poucas. A gente não pode dar mole, deixar pistas, nada. Tu imagina o que pode acontecer se o Isaú ou o Cléver descobrirem que somos nós? O que pode acontecer com as nossas famílias?

O menino cruzou os braços e remoeu a questão. Ainda no domingo, em meio às acusações de quem era o autor do texto sobre a professora, os outros três penderam para acusar Otávio. A reunião por videochamada acabou em discussão. Talvez por isso, o garoto dessa vez pareceu mais controlado.

— Se é pelo bem na nação e para não dizerem que eu sou sempre do contra, diz aí como essa trégua vai funcionar, Domingas.

— É simples: ninguém vai publicar nada durante um tempo.

— Quanto tempo? — Evandro questionou.

— Até as coisas se acalmarem. Tudo bem pra todos?

Os quatro se entreolharam. Os livros testemunharam a tensão e os conflitos em cada face, palavras não ditas, coisas escondidas. Ao fim de cinco minutos de mudez, um a um concordou com a sugestão.

Apertaram-se as mãos.

Por ora, o Divulgador estava em hiato.

*** 

Lembra do segundo capítulo, quando Jorim menciona para Lucas que "o medo é mais forte que qualquer arma"? Receios, silenciamento, ameaças, dinheiro, poder, controle, tudo alimenta os temores e promove a invisibilidade das causas. É na escola, na família, na sociedade. Quem incomoda é logo silenciado, ridicularizada, afastado, chutada. Queimado, acinzentado, cremado. Vamos encarar a segunda parte do incêndio?

Lucas Verdelhos e a Revolução WattpadianaOnde histórias criam vida. Descubra agora