11 O WATTPAD (parte 2)

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DEPOIS QUE OTÁVIO RECLAMOU DA VIDA E DONA CÍNTIA SERVIU MAIS UMA RODADA DE LANCHE, OS QUATRO FORAM PARA A VARANDA. Do prédio era possível ver parte do rio Anil. De um lado a ponte Bandeira Tribuzzi e do outro a ponte do São Francisco. O sol das quatro da tarde fazia a água brilhar. Os barcos com suas velas coloridas cortavam o espelho d'água num bailado regido pelos trabalhadores pluviais. Mais adiante, o rio desaguava na Baía de São Marcos e formava um bolsão que parecia abraçar os dois lados da ilha de São Luís.

Debruçado na amurada, Evandro olhava aquela maravilha com um olhar de saudosismo.

— Cês sabiam que, quando eu comecei a transicionar, eu pensei em pegar um desses barcos e sumir no mundo?

— Pra quê?

— Sei lá, Lucas. Pra gritar o tanto que eu queria sem ser silenciado; nadar sem ninguém me ver, ser quem eu sou sem ninguém apontar os dedos. É uma vida difícil a deles, pescadores, mas tem uma coisa de ser livre e de só viver, sabe? Eu ainda tenho um pouco de inveja disso.

— Ser livre seria bom — Otávio comentou.

— Mas, gente, nós somos livres. O problema é que aquela escola, que é onde passamos a maior parte do nosso tempo, é tão tóxica que faz com que a gente acredite que o mundo é todo do mesmo jeito. E não é.

— O Lucas disse que agora até o Isaú decidiu interferir na nossa situação, né?

— É — Domingas se virou para os pássaros que revoavam no alto. — E eu tenho quase certeza de que o pai do Francis tem dedo nisso. Lembra que várias pessoas gravaram a briga de vocês, mas a imprensa daqui não deu atenção?

— Ele ainda é influente na mídia, apesar de tudo.

— É, Evandro — Lucas comentou —, o dinheiro faz maravilhas. Por isso que tá sendo tão difícil encontrar um jeito de denunciar o que acontece com a gente. A impressão que dá é que a cada passo que damos alguém do Conselho da escola está lá, olhando, controlando.

— Tem um jeito.

Otávio, Lucas e Evandro prenderam a respiração ao perceberem que daquela vez Domingas tinha algo concreto e muito bem pensado e repensado. Como se temessem que qualquer palavra que dissessem fosse fazer a ideia da amiga evaporar, permaneceram calados e deram-lhe tempo para desenvolver a ideia. A garota permaneceu de olho no céu por minutos, quieta, fazendo os três se entreolharem tomados por ansiedade.

Quando ela se mexeu, por fim, o mundo voltou a girar e eles respiraram.

— Vocês sabem que eu gosto de ler fan fics — Evandro e Lucas olharam para Otávio com expressões de clara ameaça. Ele vivia fazendo piadinhas sobre esse gosto da colega. — E eu uso um aplicativo, uma plataforma de publicação independente, chamado Wattpad. Não é exclusivo para esse gênero de literatura, mas tem muitas pessoas que publicam fan fics por lá. Inclusive, muitos dos alunos da nossa escola.

A informação intrigou os meninos. Imaginar parte dos alunos da Damariana lendo já era um esforço mental custoso. Pessoas de mentes cinzentas lendo fan fics, então, não era o tipo de possibilidade que passava pela cabeça deles.

Evandro resumiu bem essa curiosidade:

— Cês conseguem imaginar aquela menina da 9-A, Amanda não sei das quantas, toda sertaneja universitária, lendo fan fic de K-pop?

Domingas ficou indignada.

— Ora, não é só sobre k-pop. Tem fan fic de todo tipo, até sobre novelas, apresentadoras de TV, coisas mil. E digo mais: como o gênero sofre muito preconceito, tem várias, várias, pessoas que leem, mas não admitem.

Lucas Verdelhos e a Revolução WattpadianaOnde histórias criam vida. Descubra agora