23 O HARAS (parte 2)

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SE A IDA PARA O HARAS FOI SILENCIOSA, A VOLTA PARA SÃO LUÍS FOI MORTIFICANTE. A professora Déa, irritadíssima com o sumiço de Evandro, colocou tanta pressão nos alunos que todos entraram calados e nem mesmo se olharam para não terem vontade de comentar algo. Sentada ao lado de Lucas, Domingas olhava para a janela como se estivesse plácida, contudo, conhecendo a garota como poucos conheciam, o garoto sabia que a mente dela estava com as engrenagens fumegando.

Como não estaria?

Evandro sumiu por quase quatro horas sem explicação nenhuma. Em outras ocasiões, um desaparecimento daqueles geraria sentimentos de pena, empatia. Contudo, quando a pessoa some em um haras todo fechado, as dúvidas sobem. Apesar de o lugar ter uma extensa área de mata, não era algo tão extraordinário ao ponto de uma pessoa se perder por tanto tempo. Seria chegar aos limites do muro e apenas voltar pelo mesmo caminho ou seguir para um dos lados para encontrar a saída.

Lucas espiou pelo corredor até focar no ombro de Evandro, lá na primeira fileira. A professora exigiu que o aluno sentasse ao lado dela como se temesse que o menino desaparecesse novamente. Olhando-o de longe, era perceptível como ainda estava aéreo, a todo momento olhando para os lados a cada barulho.

"Cara, o que aconteceu contigo?", estremeceu.

Quase ao lado de onde Lucas estava, duas fileiras de cadeiras adiante, ele viu Cléver. Mesmo calado, o rei-sol costumava emanar uma aura de soberba, como se ele tivesse ao redor de si uma espécie de campo de distorção que fazia até o silêncio se corromper. Mas agora estava quieto, "murcho", como diria Miridéia.

E ainda mais pensativo.

— Muito bem, primeira parada — anunciou a professora. — Quem vai descer aqui?

Uns dez alunos levantaram as mãos. Déa anotou os nomes e deu olhada pela janela para garantir que os pais já estivessem à espera. Novidade alguma, Lucas sempre era o único que iria embora de ônibus. Mas não naquele dia.

Ao passar ao lado de Evandro, ele chamou o amigo.

— Tu não disseste que ia descer comigo? Esqueceu que tá de ônibus?

Vandro ergueu a cabeça lentamente. Piscou e olhou para o amigo. Uma sombra passou pelo olhar do garoto antes dele se levantar e descer do ônibus. Despediram-se dos colegas, passaram pela catraca de entrada do Terminal e caminharam até a plataforma de embarque como se fossem dois estranhos.

E assim permaneceram à espera do transporte de um ou de outro.

Se há uma sensação desgostosa é ficar ao lado de uma pessoa conhecida, comumente falante, mas que emana tal energia que o silêncio se torna constrangedor. Lucas espiava o amigo com o canto do olho sem saber o que fazer. Evandro permanecia naquela emulação de parede, braços cruzados sobre o peito, ombros caídos, atenção voltada para o chão. Vez ou outra, indicava que estava vivo ao mover o ombro para arrumar a mochila.

Por sorte, o ônibus dele logo entrou no Terminal e parou na plataforma de desembarque. Evandro deu um passo à frente, mordeu os lábios, virou-se para encarar Lucas.

A nuvem em seus olhos estava mais tempestuosa.

— Eu... Eu fiz uma merda gigantesca hoje. E... E vou entender se tu não falar comigo pro resto da vida. Sério. Eu... Bom, eu também não falaria.

O ônibus chegou. Num impulso, Vandro abraçou Lucas como uma vítima de afogamento abraça a boia que lhe é jogada. Ainda segurou os ombros do amigo, os olhos marejados, antes de sumir ônibus adentro.

Lucas ficou sem entender.

***

O DOMINGO TRANSCORREU SEM ANORMALIDADES. Lucas acordou já tarde, tanto pelo cansaço pós-passeio, como também por ter ficado até a madrugada conversando com Domingas e Otávio sobre a esquisitice de Evandro. Quando revelou as palavras de Vandro no Terminal, os outros dois também não souberam o que dizer. Ainda tentaram contatar o garoto, trazê-lo para a conversa, mas o celular dele estava desligado. As mensagens nem foram recebidas.

Evandro estava, mais uma vez, desaparecido.

Quando levantou, foi comprar um galeto, conversou com alguns colegas que estavam na quadra de futebol, voltou, almoçou com a tia. Conversaram, assistiram TV e, aproveitando o marasmo proporcionado pelo domingo, Miridéia foi tirar um cochilo e Lucas aproveitou para colocar as leituras em dia.

Ou tentou.

Vinte minutos depois, o telefone fixo tocou. Miridéia foi atender. Era Jorim.

Lucas estranhou a ausência de perguntas ou de provocações. Saiu do quarto e, quando se aproximou da sala, viu que a tia apenas concordava, cada vez mais pálida enquanto acompanhava o que o filho dizia. Ao perceber que não estava sozinha na sala, ela disse para Jorim que Lucas estava ali e desligou o telefone.

— O que ele disse?

— Ãh... Ele... Ele vai ver se acelera a volta pra São Luís.

— Acelera? A senhora não tinha dito que ele ia ficar mais tempo em São Paulo?

— É, sim, sim — Miridéia passou a mão pela mesinha do telefone como se verificasse se estava suja. — Mas ele decidiu vir logo porque...

Olhou para o menino cheia de tremores.

— Lucas, meu filho, tu podes pegar uma água pra mim? Por favor?

— Tia, o que tá acontecendo?

— A água, Lucas.

— Tia! — insistiu.

A mulher fechou os olhos e apoiou-se na parede. Passou a mão pela testa. Suava. Encarou o sobrinho com um suspiro sofrido.

— Olha, vai ficar tudo bem. Sempre fica, não é? E... E isso não é vergonha alguma, tá? Tu foste uma vítima, eu já te disse isso, o psicólogo já disse, as assistentes sociais. Só uma vítima... Muito pequeno, criança, não podia...

— Tia, o que foi que aconteceu? — Miridéia parecia com algo entalado na garganta. Balançou a cabeça. Lucas deu um passo na direção dela. — Tia, fala! É sobre... Sobre mim?

— É.

— É sobre o que eu tô pensando?

— Mandaram pro Jorim uma novo texto. No Wattpad.

— Tá. O Divulgador de novo Certo — tentou manter a calma. — O que foi de tão grave dessa vez?

— Não foi o Divulgador, Lucas. Criaram um outro perfil, o Revelador — o garoto começou a rir, talvez de nervosismo.

— Que nome besta! Parece coisa de quem revela foto de máquina fotográfica!

— Lucas...

— E eu até imagino quem foi o gênio que teve esse ideia. É óbvio!

— Escuta, Lucas...

— Quando eu chegar na escola amanhã eu vou...

— Contaram a tua história, Lucas.

O sorriso do menino diminuiu enquanto os olhos arregalaram. Um dilúvio afogou a falsa alegria, o peito subiu e desceu rápido demais.

— A... A minha...

— Detalhe a detalhe, fato a fato, com nomes, tudo, meu menino, tudo. O teu passado inteiro foi exposto.

*

Aconteceu. É só o que digo. Aconteceu...

Lucas Verdelhos e a Revolução WattpadianaOnde histórias criam vida. Descubra agora