22 INFERNO (parte 1)

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Em seu íntimo, não queria correr, mas as pernas estavam mais vívidas que a própria consciência. Os pés ganharam agilidade e quando se deu conta ele já disparava por entre as portas, respiração no limiar do aceitável, braços batendo contra as paredes. Sentiu atrás de si aquela presença que o perseguia ali, há anos, física e psicologicamente. O garoto espatifou portas, pulou partes puídas do piso, enrolou-se pelas cortinas.

Em um dos quartos, uma mulher nua de cócoras comia uma lavagem no bacio dos porcos, lambuzava a boca, esfregava a mistura pelo rosto em desespero, fome e sofreguidão.

Atrás de outra porta, um grupo de crianças com os rostos cobertos por fraldas brincava de ciranda, os pés imersos em uma gosma avermelhada.

Uma idosa chicoteava as próprias costas enquanto rezava de joelhos. Dois homens sentados a uma mesa comiam em tigelas que pareciam crânios infantis. Cachorros devoravam um braço.

Aposentos adiante, Lucas foi obrigado a parar.

Ali, havia um berço mofado iluminado por um raio que entrava pela janela quebrada. Olhou para trás e apenas a escuridão lhe cumprimentou.

Aproximou-se do móvel. O que pensava serem cortinas eram teias de aranha que iam do móbile pendurado até as bordas do berço. No interior, um bebê negro, retinto, dormia como se ali fosse o mais cálido dos lugares. Estava sem roupa. Nas costas da criança pululava uma ferida ainda úmida, marcada a fogo. Lucas reconheceu letras, palavras; um nome.

O tão esquecido nome...

Deu um passo para trás e caiu nos braços do boi-homem. Debateu-se, mas o bicho o segurou com as patas-mãos em torno do peito. O garoto chutou, socou, mordeu, parecia impossível se desvencilhar. Num último esforço, bateu com os cotovelos no corpo daquela coisa e logrou liberdade.

Tentou correr. Seus pés se enroscaram em brinquedos largados. Foi ao chão. Quando tentou se levantar, o boi-homem o ergueu pelo colarinho.

E Lucas foi obrigado a olhar. E viu espelho. Reconheceu aqueles traços.

O boi-homem agora tinha um rosto reconhecível.

***

O GRITO SÓ NÃO FOI MAIS ALTO PORQUE ELE ESTAVA DE BRUÇOS, A BOCA TAPADA PELO TRAVESSEIRO. Cabeça dolorida, tontura, celular vibrando na escrivaninha. Engoliu o gosto amargo de bile e sentou-se. A luz do aparelho alertou para uma ligação àquela hora, às 4:30h da manhã. Com a pulsação desenfreada, atendeu.

— Lu?

— Domingas? O que... Que aconteceu?

Percebeu que a menina estava nervosa, fungando.

— Desculpa... Desculpa ligar uma hora dessas... Eu não sabia com quem falar e foi tudo tão... tão de repente...

— Calma. Tá me deixando nervoso. O que foi?

O som de inspiração pareceu puxar todo o ar dos pulmões de Lucas. Ele segurou o aparelho com mais força.

— Lu... Lu, lembra que eu te falei de umas coisas sobre a minha mãe?

— Sim, mais ou menos. Tu disse que tinha até medo de alguém descobrir.

— Descobriram.

A madrugada ficou mais fria.

— Quem descobriram, Domingas?

— Tu ainda pergunta? É claro que foi o pessoal da escola. Está em vários grupos de alunos, Lu. A foto da minha mãe nos dias de hoje ao lado de uma foto da... da reportagem que eu te falei. Aquela de quando ela foi presa quando era adolescente. Mamãe trabalha com público, Lu!

Lucas Verdelhos e a Revolução WattpadianaOnde histórias criam vida. Descubra agora