18 O ROUBO (parte 2)

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— TÁ — Domingas cruzou as mãos e olhou para cada um dos meninos. Dessa vez, diante da situação caótica, nem reclamou de estarem gazeando aula. Para ajudar, o tempo de São Luís estava nublado e a praia soprava uma brisa de calidez. — Se tiver sido algum de vocês, essa é a hora de dizer.

— Ah, claro! — Otávio se enfezou. — Madre Teresa da Perfeição não pode ter feito uma coisa dessas, né?

— Otávio, é óbvio que não foi a Domingas!

— Falou o namorado da Madre Teresa da Perfeição! Grande imparcialidade, Lucão!

— Cês não tão vendo que a gente tá se dividindo? O objetivo não era esse, era a gente ficar juntos.

Domingas jogou o peso de uma perna para a outra.

— É. Isso se a gente tivesse conseguido conter a empolgação e não fizesse besteira desde que começamos esse livro.

— Mas foi você quem nos apresentou o Wattpad. Disse que era um laboratório de escrita que aceitava tudo; que era livre de censura. Ainda mais por não ter tanta gente que conhecia aqui no Brasil. Não foi isso?

— Sim, Otávio, eu disse. Mas isso não queria dizer que ninguém da escola ia ler, né? Eu avisei que muitos alunos daqui têm conta no Wattpad e deixei bem claro que uma coisa assim podia acontecer — e, antes que o amigo replicasse, ela acrescentou: — E não te esquece que eu fui voto vencido quando tomamos aquela decisão.

— Qual decisão?

— De cada um escrever o texto que quisesse sem precisar da aprovação dos outros. Lembra? Eu não concordava com isso.

Evandro se agachou, as mãos na cabeça para se proteger daquele terremoto fraternal.

— Gente, por que é que a gente tá brigando?

— Você não vê que nós não estamos brigando? — Otávio berrou. — Estamos só debatendo a besteira que alguém fez e não quer assumir!

Lucas interferiu.

— Otávio, também não é assim... Todo mundo se empolgou com a sensação de fazer justiça; de partir pro ataque e mudar a situação. A chance de um de nós sair um pouco do controle era grande. E aconteceu. Paciência.

— O Lu tem razão. Nós somos amigos, entramos nisso juntos e vamos sair disso juntos. Não importa quem fez ou deixou de fazer.

Domingas mostrou o celular, decidida.

— Todo mundo de acordo que a gente exclua o livro?

Silêncio. Lucas olhou para os outros. Evandro permanecia de cócoras, acuado, braços em torno da cabeça. Perto dele, de pé, braços cruzados, expressão furiosa no rosto, Otávio tinha o olhar perdido por entre os prédios da Ponta d'Areia. Domingas aguardava um resposta com a expectativa saltitando nas pupilas, enxugava uma das mãos no blusão enquanto permanecia com o celular na outra como se fosse uma chave de portal à la Harry Potter onde todos encostariam o dedo.

Lucas estremeceu. Esse era o fardo de tentar o conserto do mundo? De tentar concertar opiniões conflitantes? Tudo isso pressupunha destruir as conexões?

— Antes de tudo, antes de excluir o livro, acho que não podemos enfraquecer o que a gente construiu, nossa amizade. A gente sempre esteve junto, esqueceram? Quando Domingas começou a ser atacada, quando o Evandro iniciou o processo de transição, nas cirurgias que o Otávio fez nas pernas e nos braços, quando eu precisava de um abraço, nós sempre fomos irmãos. Vocês esqueceram disso?

Otávio olhou para as marcas nos braços, o olhar úmido.

— Eu nunca teria aguentado as dores se não fossem vocês comigo, brincando, ajudando meus pais, dando força.

— E cada comemoração que cês compartilhavam comigo? Lembra de quando nós fomos juntos comprar roupas novas pra mimo? Foi tão bom ter meus amigos naquele dia tão importante.

Domingas suspirou.

— E sem contar os abraços que eu sempre recebi. Otávio — ela apertou o ombro do amigo — "eu sou pequeno, mas pra cada xingamento, eu vou te dar um abração". Lembra disso?

O garoto assentiu, tentou se conter, mas não se aguentou. Abraçou a amiga como não fazia há anos. Logo, os quatro estavam juntos, abraçados, lembrados do que valia a pena apesar de tudo. Quando se soltaram, a decisão sobre o livro estava mais clara.

— Eu concordo — Lucas se adiantou. — É uma pena, mas acho que é o melhor antes que algo pior aconteça. Como diz tia Miridéia, ''é uma contenção de danos''.

— Eu tô com cê, Lucas — Evandro assentiu.

— Otávio? — Domingas tateou. O garoto ficou vermelho. Se de raiva ou vergonha, Lucas não conseguiu distinguir. Mas sorriu.

— Tá, vai lá. Exclui logo tudo.

A menina deslizou os dedos pela tela. Era o fim de um sonho, Lucas pensou. Aguentaram tantas coisas, sofreram ataques mil, conseguiram se empoderar por meio do Wattpad, usar a força da plataforma para denunciar preconceitos. E a sensação agora era de que os preconceituosos tinham vencido a guerra. Restava engolir desaforos, encarar a caçada às bruxas que viria para cima deles e torcer para chegarem ao final do ano com alguma autoestima.

— Gente... Eu não tô conseguindo.

— Não tá conseguindo excluir o livro?

Domingas piscou algumas vezes.

— Não, Lu. Eu não tô conseguindo nada: entrar no Wattpad, no nosso e-mail, nada! Tá dando senha incorreta.

— Vai em recuperação de senha.

— Eu já fui! Enviaram um e-mail para o "cetropove". Fui lá e... Eu não tenho mais acesso ao e-mail! Tá dando senha incorreta também.

— Espera — Lucas pegou o próprio celular e tentou. Os outros dois fizeram o mesmo.

A sensação foi como ver, ao vivo, um efeito de câmera lenta. Um a um, os garotos ergueram a cabeça e arregalaram os olhos. Os queixos caíram. Então, o tempo voltou ao normal e todo mundo começou a falar ao mesmo tempo.

Otávio perguntava para Lucas se ele não tinha garantido que ninguém saberia quem era a tal personagem de anime cujo nome usaram como senha. Lucas brigava com Evandro por não insistir com mais vigor para usarem senhas diferentes no Wattpad e no e-mail. Vandro questionava Domingas por ter se recusado a dar o celular dela para a verificação de duas etapas do e-mail.

No meio da confusão, Domingas explodiu em uma frase que resumiu toda a situação e pôs fim à discussão:

— Meu Deus, calem a boca! Vocês ainda não perceberam que nós fomos roubados?

*

Aconteceu o pior e tem alguém mentindo. Se as consequências já vinham no horizonte, agora, com nomes, fotos e dados explícitos, elas se aproximam na velocidade da luz. Alguém pagará o preço. Obrigado pela companhia até aqui. Deixe aquele voto maroto, junte alguns baldes d'água e ligue para o Corpo de Bombeiros. A caça às bruxas vai começar.

Lucas Verdelhos e a Revolução WattpadianaOnde histórias criam vida. Descubra agora