18 O ROUBO (parte 1)

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Mais uma vez, corria no conhecido corredor ladeado de portas. Mas havia uma diferença: não havia nomes nas plaquetas douradas na madeira. Sentiu a presença atrás de si como uma lufada de ar opressora que invade um aposento, desarrumando papéis, revolvendo as cortinas. Algo roçou pelas pernas do garoto e ele pulou para frente. A coragem para olhar se esvaiu, não podia fazê-lo. Não por saber o que encontraria, mas sim por medo de reconhecer o rosto por baixo da cabeça de boi.

Pois, sim, ele o reconheceria como a um espelho.

Piscou. Outro corredor estava diante dele, inédito em todos aqueles sonhos. No final do aposento, réstias de luz entravam por uma porta entreaberta avermelhada. Quis correr, voltar, mas sonhos não obedecem à Física. Quando deu um passo para trás, estava em movimento para frente. Desesperou-se, forçou o corpo, bateu nas pernas, não percebeu o obstáculo no chão, caiu.

Olhou para trás. Pelo escuro, um chiado se aproximava.

Empurrou a primeira porta à direita, mas ao invés de entrar em um aposento viu-se dentro de um armário. Mãos à frente, tateou por entre as roupas naquele lugar sem fim até se ver perdido. Olhou para baixo, os pés afundados por entre meias e calçados infantis. Ao seu redor, vestidos, camisas, calças o sufocavam. Todos os tecidos vestiam luto. E poeira e mofo, e podridão de toda a sorte. Acima dele, os cabides estavam a metros e metros do alcance dos dedos.

Era impressão sua ou havia mais roupas? O espaço fechava, as peças já subiam até a altura da cintura, algo se moveu. O menino tentou fugir, mas os tecidos se enrolavam em torno do seu peito, prendiam os braços, roçavam pelo pescoço. Quando dedos ossudos de unhas imundas afastaram as roupas, o boi-homem apareceu.

— Ah, te peguei! — o bicho sibilou.

O menino se debateu, gritou, rasgou. Mas se viu imerso por uma lona preta cheia de mãos que o apalpavam dos pés à cabeça.

E diziam coisas.

E falavam "Meu menino lindo! Ah, meu menininho..."

***

LUCAS ACORODU COM AS MÃOS ESTENDIDAS. Pulou da cama e encostou-se na parede, a respiração faltosa. O tremor nos dedos quase o impediu de ligar a luminária. Quando o quarto entrou em foco, procurou por marcas de arranhões ou de unhas em cada canto. Nada. Fechou os olhos e rezou. Ao terminar, saiu do quarto e refugiou-se no banheiro. Ainda de pijamas, abriu o chuveiro e entrou debaixo d'água.

"Eu vi o rosto dele...", lembrou-se.

Tirou a roupa e começou a se esfregar com a esponja como se desejasse arrancar a pele. Cabeça, braços, tórax, barriga, braços, partes íntimas, pernas, pés, tudo foi minuciosamente lavado e relavado. Se tivesse um litro de água sanitária ali, derramaria sobre a cabeça para garantir que aquela sensação de toque fosse empurrada para o ralo.

"Eu vi o rosto dele."

Torceu a roupa na pia, enrolou-se na toalha e saiu pé ante pé para se arrumar e voltar à cozinha. Sentiu-se grato por nem a tia e nem o primo estarem ali. Depois do ocorrido no dia anterior, a sensação de ser culpado por todos os problemas martelava a cabeça do garoto como se fosse um gongo.

Passou café, molhou massa de cuscuz, cortou algumas frutas e cuidou de comer o mais rápido possível para evitar encontros. Conseguiu. Crente de que os céus haviam decidido atender às suas preces, Lucas apressou a escovação dos dentes, jogou mais algumas coisas na mochila e saiu do quarto à toda.

BAM!

— Ai, virou cosplay de furacão, foi?

Jorim caiu de bunda no chão, massageando a testa. Lucas fazia o mesmo na própria cabeça.

Lucas Verdelhos e a Revolução WattpadianaOnde histórias criam vida. Descubra agora