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HOUVE UM PERÍODO DE ESPERANÇA. Para a surpresa do quarteto, durante alguns dias os ataques cessaram. Contribuiu muito para isso o fato de as provas finais do bimestre terem chegado. A Escola Damariana, focada em números e rankings, adorava se vangloriar de ter a maior quantidade de alunos aprovados no ENEM. Era só começar o ano para Isaú Fauller aumentar a poluição visual de São Luís com outdoors onde ele aparecia abraçado com os aprovados. O slogan era sempre uma variação de "Escola Damariana, aqui somos sempre vencedores". Diante disso, os professores faziam questão de testar o conhecimento dos alunos com avaliações de fundir a cabeça.

Uma vantagem trazida pela confusão entre Francis e Evandro foi que o professor Bélis adiou a apresentação do tal trabalho sobre a escravidão para uma "data futura" que ele não especificou. Lucy, cuja mãe era amiga de uma assessora da escola, disse para eles que o professor foi chamado a prestar esclarecimentos sobre o tipo de conteúdo que trabalhava com os alunos.

— Esse Isaú é um bosta! — Otávio atacou.

— Mas não foi ele quem fez a reunião — Lucy corrigiu. — Foram os pais de alguns alunos que exigiram uma explicação.

Lucas escutou aquilo e olhou para os outros três com uma expressão de "viu como eu tinha razão e essa história de denúncia pro jornal não ia dar certo?".

Mas a mudança que mais surpreendeu a todos foi a de Cléver. O garoto ainda se pavoneava e se exibia, porém, as pessoas notaram que a relação dele com Túlio andava estremecida. Os dois ainda estavam no mesmo grupinho, mas era notável como faziam questão de não trocar nem olhares.

— Amor é fogo que arde sem doer / É ferida que dói e não se sente / É um contentamento descontente / Dor que desatina...

Domingas tapou a boca dele.

— Otávio, menos. Não me faça imaginar o horror que seria esses dois trastes juntos.

No dia seguinte, quando a dupla voltou a ser um trio com a volta de Francis, as coisas não melhoraram para a patota do Palácio de Versalhes. Os conflitos ainda eram evidentes. Por algum tempo, o sol pareceu menos radiante, a monarquia enfraqueceu e o grupo de Lucas experimentou o que era ir para a escola sem sofrer bullying dia sim e o outro também.

Foi um sonho passageiro.

Era uma quarta-feira de paz quando eles voltaram do intervalo do almoço. Evandro e Domingas conversavam frivolidades, Lucas lia algo no celular e Otávio vinha mais atrás. Entraram na sala, enfrentaram a onda de confusão e falatório pós-almoço e cumprimentaram a professora Regiane, de Filosofia. Tudo estava bem, a aula começou, aquele marasmo das 13h, alguns com sono, outros fingindo prestar atenção, quando Otávio emitiu uma espécie de guincho.

Uma menina perto dele que babava sobre o caderno se assustou, deu uma guinada para trás e deu uma cabeçada em outra que cochilava. Cadernos caíram, começou um falatório, a confusão atraiu a atenção da professora. Regiane parou a aula e aproximou-se de Otávio. O garoto escondeu algo dentro do livro, mas a mulher viu e estendeu a mão.

— Me dê.

— Não, professora. É coisa minha. Uma cartinha de amor — o pessoal riu.

— Senhor Tromep — mexeu os dedos da mão estendida diante do menino —, eu quero ver que papel é esse. Agora.

Otávio ainda tentou imitar Silvio Santos.

— A senhora está certa disso? Não quer chamar os universitários? — Mas, diante do calor que emanava da professora, o jeito foi entregar o papel. — Eu só quero avisar que não fui eu. Eu nem tenho mais idade pra brincar com recorte de revista.

Ninguém entendeu, mas Regiane, pelo visto, sim. A medida que os olhos dela percorriam a carta, ela foi ficando mais e mais pálida. Até os cabelos dela, já grisalhos, parecem mais brancos quando a professora tomou fôlego, lábios trêmulos, e se virou para a turma.

— Quem escreveu isso? — Todos ficaram calados. Ela estendeu a carta à frente, parecia a um ponto de explodir. Falou mais alto. — Quem escreveu isso? Falem!

Enquanto a educadora tentava se equilibrar, Lucas, Domingas e Evandro conseguiram ler o conteúdo da mensagem. Escrita com letras recortadas de revistas e jornais, parecia até uma obra abstrata digna de um museu. Mas não em relação ao que dizia. A carta falava que Otávio era adotado, deixado no orfanato porque os pais biológicos não queriam um "ratinho" como filho. Por fim, duvidava que um dia o garoto pudesse ter uma namorada porque deveria ter "o pinto do tamanho de um grão de arroz".

Mas o pior estava no final, onde dizia que, além disso, ele agora andava com PPP: "pretos, pecadores e putas".

— Já que ninguém quer dizer quem fez esse horror, eu vou ser obrigada a chamar a Coordenação e pedir para os pais...

Não continuou.

No meio da fala dela, Cléver ergueu a mão e, sem esperar por autorização, aproximou-se da professora. Todos o viram caminhar passo a passo como se flutuasse ao invés de andar. Ao chegar ao tablado, disse algo no ouvido de Regiane, que perdeu o restante de cor que ainda lhe sobrara no rosto, e fez um gesto apontando para a porta.

O rei-sol agradeceu, sorriu para os amigos lá atrás e saiu.

Ela abotoou a blusa e ficou um tempo com a mão no colarinho, para cima e para baixo, como se estivesse engasgada. Sob o olhar atônito dos alunos, dobrou a carta, desdobrou e tornou a dobrar. Colocou-a dentro de um livro.

— Professora — Otávio levantou o braço —, a minha carta...

— A sua... Ah, claro, a sua carta. Bom, senhor Tromep, eu vou... Eu vou levar para que a coordenadora pedagógica de vocês tome providências, é claro. Um horror... — passou a mão mais uma vez pelo colarinho. — Um horror.

Ao beber água da sua garrafinha, viram como a mulher tremia. Derramou um pouco pelo queixo. A turma do fundão caiu na zoação, a professora se limitou a olhar para eles, amedrontada, animal acuado. Levantou-se da cadeira, tropeçou, quase caiu. Mais gargalhadas. Ela havia perdido o controle da sala. Ajeitou a roupa e retomou a aula num fino de voz que nem Lucas, que estava na primeira cadeira, conseguiu ouvir.

Minutos depois, de mão em mão, um papelzinho chegou novamente à carteira de Otávio. As pessoas admiravam o menino pelo fato de que ele não se abalava com esse tipo de agressão. Como dona Hermínia pedira a Evandro, o garoto aprendera a "manter a cabeça erguida e enfrentar a boa luta".

Na tira de papel estavam escritos quatro letras P:

Preto

Puta

Pecador

& Pintinho.

As gargalhadas de Francis e de Túlio foram tão altas que a professora, de costas para a turma, ficou calada, as mãos fechadas, cabeça baixa. Otávio se levantou, virou-se para eles e fez uma reverência, sorrindo.

— Acho engraçado como quem se diz muito macho sempre ama fazer piada com pinto, né? Isso é o quê? Vontade? Se for, é só me avisar que eu resolvo o problema de vocês.

Alguns alunos aplaudiram, outros vaiaram. Regiane se limitou a suspirar e prosseguiu no seu falatório mudo. Lucas percebeu que a alegria dos agressores arrefeceu, mas não sumiu.

A trégua de paz havia acabado.

*

O grupo chegou a mais um ponto de virada (até quando?). Uma atitude precisa ser tomada, não? Antes, porém, veremos uma amostra do horror causado por algo já bem conhecido por nós: as fake news. Mas logo o jogo vai virar. Sempre vira, acredite. Aja com coragem, deixe seu voto. Agressões online estão na virada do capítulo.

Lucas Verdelhos e a Revolução WattpadianaOnde histórias criam vida. Descubra agora