5 OLHARES

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O CORREDOR PARECIA MAIS COMPRIDO DO QUE ELE LEMBRAVA. Portas fechadas, madeira puída no chão, mofo sorrindo nas paredes. Olhou para trás e a escuridão olhou de volta. Sim, já estivera ali, naquele lugar, naquele sonho. De fato, já estivera ali na realidade, há muitos e muitos anos. "Acorda, Lucas", pediu a si. Porém, o pedido já era um mero costume. Tinha consciência de que não seria tão simples. O jeito era prosseguir.

"Talvez ele não venha dessa vez", alegrou-se.

Voltou a olhar para o nada e o nada continuou calado, vigilante. O primeiro passo ocorreu sem que ele previsse. Quando deu por si, já andava por entre as portas, olhos atentos a uma novidade: em cada uma delas, havia um nome diferente, todos masculinos. Estendiam-se por dezenas de metros, placas douradas com letras pretas, algumas delas manchadas de vermelho. Em outras, a cor escorria por entre lascas da madeira e chegava até o piso, onde formava uma poça de horror. Surpreendeu-se ao ler nomes conhecidos de parentes que há muito não sabia mais da existência; amigos de passado enterrado, pessoas fluídas de uma vida deixada para trás.

Eis que parou na frente de uma porta entreaberta.

A respiração saiu condensada como só acontecia naquele lugar, às primeiras horas da manhã, quando as árvores e o campo empurravam tsunamis de névoa por sobre a fazenda. Tudo branco, triste, mudo, morto. Empurrou a porta, olhou para trás. O nada ainda estava imóvel. "Acorda, Lucas. Acorda, cara, por favor!". Sem efeito. Piscou e já estava dentro do quarto, a cama de dossel tomada por teias de aranha, cortinas fechadas ao redor do colchão. Não queria abrir, nunca queria, "mamãe, mamãe, por favor", mas suas mãos afastaram o tecido.

Havia um bezerro sujo de lama e sangue berrando, contorcendo-se por entre os travesseiros. Ao lado dele, deitado sobre um roupão felpudo, chicote em uma das mãos, um homem nu com cabeça de carcaça de boi acariciava o animal, farejava-o, urrava, mugia. Quando o menino soltou o ar que prendia desde que entrara ali, o boi-homem o farejou, olhos vazios voltados para o intruso. Mugiu na mente do garoto.

— Deita aqui com nós.

Quando a mão peluda tocou em seu braço, o bezerro estrebuchou e Lucas correu quarto afora.

"Acorda, acorda!". O bicho vinha desembestado, o estalar do chicote pelas paredes, destruição. O garoto enveredou pelos quartos, passou por outros corredores, piscou, estava em um galpão. Redes se amontoavam feito favos de uma colmeia. Em cada uma delas, mulheres e homens pretos olhavam para ele com olhos de fome.

E crianças e velhos na senzala da eternidade.

Lucas acordou sem ar, grito preso, oceano nos olhos. Aos poucos, os pulmões se acostumaram ao fato de o sonho ter acabado, o coração voltou à normalidade, a pulsação abrandou. Escutou o escarcéu dos maracanãs se cumprimentando em sua revoada pelo despertar de mais um dia. Abriu os olhos. Uma mescla de luzes azul e cinza redecorava o teto. O garoto se sentou, massageou braços e pernas, ainda tensos.

Sonho velho companheiro. A nitidez do lugar soava como o indicativo de algo ruim. Quando era mais novo, via vultos e apenas corria a esmo por aquele corredor, fugindo de uma sombra. Os berros ao acordar eram tantos e tão altos que Miridéia certa vez teve de se explicar para o Conselho Tutelar. Depois disso, levou o sobrinho para tentar todos os tratamentos possíveis. Terapeutas, psicólogos, psiquiatras, acupunturistas, mestre de Chi, mães de santo, padres, pastores, médiuns, curadores, Lucas visitou todos por anos e anos. Nada funcionou.

Até que uma antiga vizinha deles comentou sobre projeção astral e deu livros para que Lucas experimentasse. Meses de frustrações depois, ele viu pela primeira vez a sombra virar o boi-homem, e a senzala, e os nomes nas portas dos quartos. E entendeu que tudo aquilo só tinha um significado: medo. Começou a encarar aquele ambiente, mergulhar, ansiar por dormir.

Lucas Verdelhos e a Revolução WattpadianaOnde histórias criam vida. Descubra agora