Capítulo 17

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O temporal que cai do lado de fora deixa a impressão de que Nova Iorque será inundada como a cidade de a Arca de Noé e sobrarão apenas os topos dos arranha-céus para contar história. É tarde. O pessoal praticamente todo foi embora, mas eu estou esperando Stella sair de sua sala, porque só posso partir quando ela se for. Realmente penso em cochilar em cima da mesa e...

— Hathaway? — O diabo chama. Estou com a cabeça deitada em cima dos braços. Eu dormi? Sim, dormi. Droga, não deveria ter acontecido... Me aprumo na poltrona e busco algo para fazer, mas minhas coisas estão todas guardadas e o computador em processo de desligamento, que ela induziu. — Está na hora de ir embora. Amanhã você terá o dia de folga e pode aproveitar seu final de semana... fazendo o que quer que seja. — Há um pouquinho de julgamento na cara dela e seu nariz torcido entrega.

Assinto. A verdade é que ainda estou um pouco tonta de sono e todo o nosso caminho para o elevador não me desperta nada mais que um bocejo de cansaço. Aos poucos, vou acordando ao pensar em sair nessa chuva horrorosa e pegar ônibus para chegar em casa. Dormir na empresa e esperar pelo dia seguinte é a melhor ideia de todas.

— Nos vemos na segunda, senhora Falcone. — Sussurro a ela.
Eu pego uma sacola plástica na recepcão e envelopo meu celular, documentos, bolsa e tudo que não pode entrar em contato com àgua, rezando para que eles aguentem. Não trouxe guarda-chuva. Sim, esqueci desse pequeno detalhe. Stella não está mais à vista, e deduzo que esse seja meu sinal para ir embora. Eu passo pelas portas giratórias para a calçada, onde mergulho para a chuva torrencial e sou ensopada em questão de poucos segundos dos pés a minha cabeça. Há um pequeno cobertor nas ruas, poças e boeiros que quase não acompanham o ritmo da enxurrada. Rezo para a Virgem de Guadalupe.

Preciso atravessar a rua e chegar a parada o quanto antes ou serei dissolvida como açúcar na panela. Consigo chegar a ela em menos de um minuto, mas meus sapatos e roupas estão destruídos, os dedinhos doloridos e a sensação de que pegarei uma pneumonia se torna um pessimismo. Agora basta esperar um ônibus para ir embora... E nenhum passa por aqui. Nunca. Porra. Bato meus pés. Não há mais ninguém aqui pelo horário e estranho esse detalhe por se tratar de Nova Iorque.

A chuva se intensifica e o vento a trás para cima de mim numa posição em que nem o teto consegue me deixar ilesa. Retiro meu casaco e o ponho em cima da cabeça. Um carro estaciona a poucos centímetros. Não conheço muito de carros, mas esse é um modelo alto, branco e potente. O vidro se abaixa. Stella está na cabine do motorista.

— Entre. — Ordena ela.

Meio que em choque, me aproximo da porta. Não quero aceitar uma carona dela — porque, agora que Taylor está resfriado, Stella têm pegado a direção e não conheço seus métodos no trânsito —, mas o desespero fala alto.

— Têm certeza?

— Quer que eu mude de ideia?

Não quero. Entro, me sento no banco de couro — que é confortável — e ela fecha meu vidro ao apertar um botão do painel. O interior do automóvel está quente pelo aquecedor ligado. Meus músculos agradecem. Me sinto um tanto rígida por estar ensopando o assoalho, mas ela continua limpa, impecável e não parece se importar nenhum pouco.

— Obrigada...

— Coloque o cinto.

O faço. Stella parte pela rua. Diferente de meus temores, ela dirige com suavidade e cautela, prestando atenção em cada um dos vidros que são constantemente limpos. Eu explico meu endereço, que apenas faz um gesto positivo com a cabeça. Relaxo no banco. Quando o silêncio se torna insuportável, aperto o botão para ligar o rádio. The Weeknd toca baixinho. Não gosto do que me causa. Tenho alguma coisa com carros que me deixam... nervosa, por assim dizer — não desse jeito, daquele jeito. Estamos isoladas do mundo inteiro e Stella está odiavelmente linda hoje com esse conjunto social com calça, sem o casaco caríssimo de mais cedo.

— Hum, não sabia que dirigia. — Puxo assunto.

— Eu dirijo.

— E estou muito surpresa que tenha ido me buscar. O que a fez mudar de ideia e não me deixar ir embora como todos os outros dias? — Stella e eu sabemos que tenho uma língua afiada fora do trabalho. Acredito que ela vai me mandar ficar quieta assim que chegar ao limite da paciência, enquanto isso, quero testá-la.

— Era meu caminho.

Ela mente numa naturalidade incrível, o semblante continua pleno e os dedos giram o voltante.

— Não. Não era. Sei bem disso.

— Quer que eu te jogue fora daqui? — contra-ataca.

Nego duas vezes.

— Não é feio admitir uma boa ação.

— Mas é feio questionar quem te salva de nadar para casa. Por que você fala tanto? E têm tantas perguntas?

Estou cativando cada sugestão de intimidade que possa ter com ela para nos aproximar, por isso levo pela esportiva.

— A senhora gosta, no fundo.

— Nem ferr... — Falcone se priva. Não acredito que ela estava prestes a sair da pose perfeita e citar um palavrão bem na minha frente. Droga, mais um segundo e eu teria o ouvido. — Não mesmo, quero dizer.

— Saquei. — Nós avançamos pela cidade, estamos indo rumo ao meu bairro e já não quero mais ficar em silêncio. — Quer saber, acho que gosta de mim, sim.

— Gosto de você? — Stella caçoa.

— Sim, porque se não, teria me demitido a muito tempo. É isso ou acha meu trabalho excelente demais, porque candidatas a minha vaga não faltam. — Estou sendo ousada demais e isso pode botar meu pescoço numa forca, mas eu meio que não me importo nem um pouco. De verdade, acho irrelevante.

— Você está louca.

— Não estou.

— Caralho, como você é insistente. — Ela explode.

Minha única reação é sorrir.

— Uau, Stella Falcone xingando...

— Você me tira do sério. — Resmunga, mas noto que seus ombros descendo no banco. Por algum motivo, Stella relaxa e eu me pergunto: O que está rolando aqui?

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