XV. "Fazes o Que Te Apetece"

4 0 0
                                    

Quando Nietzsche traça o caminho do super-homem nas linhas "faça o que te apetece, mas saiba muito bem o que te apetece" na tentativa de alternativa ao Cristianismo, ele sem querer cai mais perto da moral cristã do que ele imagina, mesmo que ele troque "santidade" por "super-homem", e por mais liberal que possa parecer sua citação. Explico:

Para além dos desejos inconscientes do homem (como o que é chamado de concupiscência por S. Agostinho), para além do instinto animal natural, existe em nós o desejo inconsciente e involuntário para um certo tipo de conhecimento que nos tire do tédio da vida. Tédio esse que existe tanto para o niilismo negativo quanto para Santo Tomás.

Na sentença "mas saiba o que te apetece", Nietzsche faz um apelo ao saber exato de nosso desejo, para que ele não se confunda com algo de externo a nós, mas parta inteira e somente da nossa vontade livre.

E o que seria isso de externo que pode nos coagir a "buscar" algo que na verdade não queríamos? Pode ser uma mentira que enganou nossa intuição. Uma decepção. Ou uma coerção física mesmo. Mas pode ser também as nossas próprias forças animalescas que confundiram muitas vezes certos prazeres, camuflando-os de sentido da vida e estado de paz perante nossa razão. Se nós soubéssemos antes que tais prazeres não eram tudo aquilo, não o buscaríamos com tanta ânsia. Algumas vezes nossos desejos podem ser armadilhas, e na maior parte do tempo o caminho que traçamos é perda de tempo, e é pra isso que alerta o filósofo.

O algoritmo do prazer na equação da vida é indiferente para Nietzsche, como ele diz no "Além do Bem e do Mal", e então "faça o que te apetece" jamais pode ser confundido com "faça o que te dê prazer". Esse termo, "apetece", vai muito mais além, mesmo na visão cristã. Santo Tomás explica que assim como os prazeres apetecem os sentidos, o bem apetece a vontade e a verdade apetece a inteligência (e o termo é o mesmo para os três).

O homem terá, então, que, livremente, fazer certo trabalho ascético para purificar seus instintos e vaidades, mas só na medida certa para que não atrapalhem a aquisição do que realmente queremos. É qual é nosso desejo supremo? Segundo a visão cristã, é o conhecimento ou visão de Deus.

O desejo, ainda que involuntário, mas supremo, do conhecimento de Deus, foi impresso na alma de todo ser humano, até mesmo do ateu, e é isso que fará, hipoteticamente, os abandonados no inferno "sentirem" (de certa forma) falta de Deus, por mais que tenham escolhido a eternidade sem ele.

A verdadeira liberdade é, como diz Agostinho, o livrar-se das amarras do pecado. A santidade ou o "super-homem" é um caminho quase impossível, se existiu um santo, ele com certeza nunca foi viciado em agir como ele age, mas o mesmo não se pode dizer das vaidades ou vícios carnais. Ele também resume os 2 mandamentos de Deus em um, "ame a Deus e faça o que quiser", e isso não é liberal, porque quem ama a Deus nunca irá ofendê-lo, e também não é coercitivo, porque esse amor também foi voluntário. Somos eternos escravos da nossa vontade (a criança de Nietszche, que quer porque quer; coincidentemente, "o reino dos céus é delas").

Além da libertação do instinto animal que tanto Nietzsche quanto o Senhor Jesus professa, ambos também professam uma segunda libertação, a libertação de si mesmo. Por isso, em algumas traduções mais exatas, o "super-homem" pode ser o "além-homem". Isso é extensamente pregado na libertação da "soberba da vida".

"O amante de Jesus e da verdade, ..., pode facilmente ... elevando-se em espírito, acima de si mesmo, fruir delicioso descanso." (II,6)

A Nietzsche, um grande mérito por refletir sobre grandes temas da vida de um modo unicamente belo, no sentido poético, e fora da bolha ideológica da época. Mas o grande demérito de não conhecer o que significa moral cristã, em parte devido a sua experiência pessoal que pode ter enviesado sua visão, e impedido de tê-lo ido mais além na sua análise religiosa, além também de um luteranismo fideísta muito específico.

Tomás de Aquino sobre o tédio da vida:
"Os prazeres corpóreos são, como diz o Filósofo [Platão], medicinais, concedidos ao homem para lhe tirar o tédio da vida.."
(Suma, Ressurreição, art. 4, resposta à quarta)

"Ora, do prazer corpóreo não pode, mesmo do modo já referido, resultar, o bem perfeito, pois o sentido ... conhece o singular, determinado pela matéria; o intelecto porém, potência independente da matéria, conhece o universal abstrato desta e contém em si infinitos singulares."
(no que consiste a felicidade/beatitude)

*Outra coincidência interessante com o niilismo negativo: o homem não pode atingir a beatitude, ou se livrar do tédio, nessa vida; segundo Santo Tomás de Aquino.
(se o homem pode alcançar a beatitude)

Textos Cripto-NietzscheanosOnde histórias criam vida. Descubra agora