XVI. Dilema de Deus e o Problema do Mal

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Existem muitas formas de abordar o tema, mas não irei tratá-lo do modo clássico que muitos católicos fazem, "o mal não existe" que faz Santo Agostinho, ainda que seu argumento demonstre um ponto verdadeiro: o de que o mal não é uma entidade que existe realmente, uma "coisa-em-si".

Ele é insuficiente pro homem moderno, e por quê? Porque o homem moderno não está numa discussão metafísica quando questiona a razão da tristeza ou sofrimento diante da suposta misericórdia e poder divino, como estavam os gnósticos contra Agostinho, querendo dizer que existe um "mal-em-si (demiurgo)".

O argumento poderia ser facilmente respondido com "então porque Deus permite a ausência do bem"?

Não. O questionamento do mal esconde uma "pegadinha" inconsciente e muito sútil. A palavra mal irá incluir muitas coisas. Segundo Santo Tomás, quando o homem diz "mal", ele se refere a duas coisas:

•a deformidade da culpa
•a pena

A "deformidade da culpa" é o mal moral. E consiste simplesmente no seguinte: desordem individual da vontade. Isso significa que o homem que simplesmente desejou "racionalmente" matar seu irmão cometeu um mal moral, ou pecado. O mal moral NÃO é um acontecimento externo, ele se refere a realidade INTERNA da intenção da alma. Essa desordem consistirá em desejar um Bem (supondo, um certo bem estar psíquico) em detrimento de outro bem na ordem de valores daquele que comete o mal (em detrimento da vida do irmão).

A "pena" é o problema do homem moderno. A pena é a dor e a aflição.

É um evento EXTERNO de uma realidade concreta, a dor, a tristeza e a aflição EXISTEM. E tem mais: conforme o próprio Santo Tomás, Deus as quer. Porque uma grande dor pode sim ser causada por um assassino, mas também, supondo, o assassinato falhe. O mal moral foi feito na alma do assassino, mas o evento externo foi impedido por Deus. Mas nem sempre esse impedimento ocorre, mesmo Deus, autor de todo o bem moral, tendo poder para impedí-lo.

Coisa ainda mais problemática na ótica do questionador seria analisar os desastres naturais com mortes de inocentes, em que não há nenhuma causa humana envolvida.

Segundo a teologia cristã, desastres naturais advém do castigo divino ao pecado original de Adão. E aí?

Esse é um problema de ordem emocional, não racional-metafísica. Como diz Nietzsche, toda filosofia que se preocupasse com dor/prazer não passaria de criancice. Deus tem a sua moral, e ela serve exclusivamente para apontar o homem até ele mesmo, que transcende todo o universo. Mas algumas reflexões me ajudaram muito a entender esse dilema emocional.

Eu não prometo que essas explicações tornarão a realidade de nossas vidas inteiramente agradáveis, pois sofrimento é sofrimento e não é outra coisa, mas pode ajudar um pouco a conciliar esses sentimentos com nossa razão.

É certo que Deus pode tirar de um mal um bem maior. Mas o que se pode responder também, de forma mais completa, é que alguns bens (no nível de grandeza deles) só podem ser atingidos pelo mal (ausência dele). Para ser mais prático, podemos pegar exemplos da nossa curta vida, em que ficamos muito alegres com a obtenção de um bem, depois de ter perdido ele por um tempo, ou nunca tendo ele antes. Nós sabemos também que não damos tanto valor pras coisas que temos atualmente e por muito tempo, nos entediando facilmente, e só conhecendo seu real valor com a perda. Se a perda foi sofrida, após recuperar a coisa, podemos perceber até detalhes dela que antes não valorizavamos. Extraímos um bem de um mal.

A morte, perda de todos os bens, em face da ressurreição eterna, é a maximização cristã desse "prazer pós-perda".

SEGUNDA REFLEXÃO: tudo o que importa pro homem é o estado atual + onipotência divina

Algumas experiências passadas podem deixar traumas por um tempo, enquanto que alguns males que sofremos no passado são superados, e não sofremos no presente por ele. Sendo Deus onipotente, poderia fazer com que superassemos todas as dores da vida presente, e ainda presentear-nos com um prazer bônus pós-perda, que seria impossível sem a perda. E repito: não ficaríamos com nenhuma sequela, porque a verdade é que tudo o que importa pra nós é o estado atual.

A ANALOGIA DA MÚSICA

Segundo Santo Tomás, Deus poderia ter criado infinitos universos melhores que o nosso, na condição atual. Talvez em um hipotético não haveria dor, e os homens teriam mais prazer e alegria que agora. A pergunta que fica é, então: por que foi esse que ele criou?

É preciso entender que as responsabilidades morais individuais de Deus são de acordo com sua realidade eterna, diferente da nossa que é temporal:
Ele vê todas as coisas acima do tempo. Ele vê o passado, presente e futuro postos numa mesa, formando uma música.

Como em toda música, existirão notas distintas, acordes mais graves ou agudos, e essa diferença e a sua composição fará a beleza completa. Nós só podemos julgar se uma música é boa se tivermos escutado uma parte considerável dela.

Deus escuta toda a música. Mas nós só uma parte minúscula.

Talvez colocar só a nota do prazer deixaria a música feia. Sim, deixaria ela monótona. A nota do mal realça a do bem, como uma grave realçará a aguda que vem depois.

Agostinho: "A admirável beleza do universo resulta de todos os seres; e nela, mesmo o que é mal, bem ordenado e posto no seu lugar, põe mais em evidência o bem, de modo que este mais agrade e seja mais louvável, quando comparado com o mal."

E digo mais: talvez se tivéssemos a visão do todo divino, essa música inteira no seu passado, presente e futuro, talvez desejaríamos voluntariamente nos submeter ao sofrimento, só para no final, ressuscitar com a nota da alegria e poder sentir ela de modo mais aguçado.

Nietzsche faz na "Gaia Ciência", uma comparação parecida: se um anjo aparecesse pra você viver toda a sua exata vida. A sua exata dor e alegria no mesmo lugar que viveu, do início ao fim, sem nada de novo. Você aceitaria? Para Nietzsche, independente se isso vai ou não acontecer, o certo (a postura do super-homem) seria dizer sim, pois vivemos o momentos de alegria inexplicável, e é isso que importa.

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