1- Emma

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Acho que eu acabei de fazer uma das maiores merdas da minha vida. Esfrego os olhos novamente. As luzes brancas do salão estão me deixando com dor de cabeça. A cabeleireira se aproxima com uma expressão neutra e um espelho na mão para que eu possa ver a parte de trás. Até que não ficou tão ruim. Olho para mim no grande espelho à minha frente. Realmente foi uma mudança radical. Passo os dedos pelos meus cabelos escuros e extremamente curtos, sentindo a sensação do novo corte. Minha cabeça estava mais leve e meu coração batia forte no peito. Acho que eu estou feliz com a mudança.

- Seus óculos- A cabeleireira o pega de cima da mesinha e me entrega.

Coloco os óculos de armação redonda no rosto. Isso também era novidade, eu havia começado a usar óculos na semana passada. Se me olharem de longe e sem prestar atenção, podem me confundir com um garoto. Mas se me olharem de perto e com atenção verão que sou uma garota. Uma garota bonita de cabelos curtos. É... Eu estou me achando muito bonita nesse momento.

Saio do salão me sentindo melhor do que quando entrei. Respiro fundo o ar quente do fim de tarde. A avenida estava congestionada de carros e os últimos raios de sol banhavam o topo dos prédios. Desço os degraus aos pulinhos e comprimento uma mulher que não conheço com um aceno. Ela me encara com um sorriso torto e desconfortável. Tudo bem. Eu só queria que alguém me visse com meu novo corte.

Desço a avenida em passos largos e confiantes o suficiente para fazer qualquer coisa. Por mais quente que o ar fique com os motores dos carros, o vento me faz arrepiar. Aperto a jaqueta ao redor do corpo. Eu estava usando aquela que eu havia tentado bordar com minha avó. Havia o contorno de uma flor de pétalas alaranjadas no bolso da frente e algumas estrelas amarelas e brancas espalhadas em minhas costas. A maioria das minhas roupas era assim, bordada. É uma consequência de morar com sua avó a maior parte do tempo enquanto seus pais trabalham feitos malucos.

Em poucos minutos chego ao meu destino. A pequena casa da minha avó está banhada pela luz alaranjada do por do sol. Bonita vem cacarejando alegremente em minha direção quando empurro o portão para entrar.

-Bonita! Como vai minha menina?- Acaricio o topo da sua cabeça- O que achou do meu novo visual?

Seus olhinhos escuros e redondos me encaram e um cacarejo lhe escapa. Rio. Entro na casa me livrando das minhas botas e ficando de meias. Adivinha? Elas também estão bordadas. Esse par tem delicadas flores vermelhas com ramos verdes espalhadas ao seu redor.

-Vovó? Cheguei!- Grito mesmo sabendo onde ela está. É quase certo que ela está na cozinha debruçada sobre a mesa costurando uma de suas belas peças.

-Oh, Emma!- Ela se levanta boquiaberta e segura meu rosto entre suas mãos calejadas- Você ficou tão linda nesse corte. Agora estamos mais parecidas do que nunca.

Vovó passa os dedos pelos fios negros do meu cabelo admirando-os. Ela possui o mesmo corte, a diferença é que seus cabelos são grisalhos.

-Tem razão. Eu adorei- Dou uma voltinha para que ela me olhe. Eu poderia me exibir por horas.

-Veja- Minha avó me leva até a mesa e ergue a peça que ela estava trabalhando. Flores de cores vivas desabrocham da barra do pano de prato- Está quase pronto.

-Está perfeito, vó- Sorrio e sigo para meu quarto. Os passos confiantes fazendo o assoalho estralar abaixo dos meus pés.

Encosto a cabeça no travesseiro. É tão estranho deitar e não ter aquele mar de cabelo ao meu redor. Minutos mais tarde, enquanto eu encaro o teto do quarto e balanço os pés, uma luz forte invade o cômodo. O carro da minha mãe estaciona no quintal e eu a vejo ajeitar uma mecha de cabelo que se desprendeu do penteado enquanto caminha sem pressa.

-Mãe?- Coloco a cabeça para fora do quarto. Minha mãe para por alguns segundos como se não me conhecesse- Chegou cedo.

-Filha você está... Diferente e linda- Ela deixa a bolsa e as chaves em cima da pequena e alta mesa ao lado da porta onde tem um vaso de flores- Consegui sair mais cedo hoje. Vou te levar para comer alguma porção naquele lugar que você gosta.

Uau. Isso era um grande milagre. Eu e minha mãe saiamos para comer fora de vez em quando ou nunca.

-E o pai?- Pergunto recolhendo minha bota que estava largada no meio do caminho.

-Você sabe que ele chega cansado do trabalho. Hoje vai ser apenas nós duas- Minha mãe dá um beijinho rápido na bochecha de sua mãe- Bom, se a senhora quiser nos acompanhar está convidada.

-Não, não. Eu não quero estragar esse momento de vocês. Já passo tempo demais com a Emma, não é mesmo?

-Tudo bem. Se arrume enquanto eu tomo um banho.

O sol já tinha ido embora quando chegamos ao quiosque. Escolhemos uma mesa do lado de fora. O vento gelado da noite bagunça meus cabelos e os recém-lavados da minha mãe. Eu usava a mesma roupa de mais cedo, já minha mãe havia trocado sua roupa de trabalhar por um vestido de mangas longas.

Logo nossa porção de batatas fritas e frangos empanados chegam acompanhados de molhos. Assim que o garçom vira as costas, mergulho o frango no ketchup e mordo um pedaço.

-Senti falta desse lugar- Olho ao redor enquanto o frango se dissolve em minha boca deixando um gostinho de limão e alho. O varal de luzes estava aceso iluminando todas as mesas. A música lenta e agradável tocava baixinho no fundo.

-Eu também.

Minha mãe limpa os cantos da boca com um guardanapo e depois o dobra colocando embaixo de sua lata de refrigerante.

-Amanhã suas aulas começam- Diz.

-O que?- Tomo um gole de refrigerante para fazer o pedaço de frango descer- Não é daqui a duas semanas?

-Então... Querida eu ia te contar, mas eu estive tão ocupada- Ela pousa as mãos engorduradas sobre a mesa e suspira- Você vai começar em um colégio novo amanhã.

-Como?

-O dinheiro está curto, Emma. Você vai para um colégio público esse ano.

De repente, não sinto mais fome. Ela vai embora junto com toda a minha animação de hoje. Meu estômago está pesado e meu coração parece que está batendo no ritmo errado.

-Não fica brava. É temporário. Vai poder voltar para seu colégio antigo quando as coisas melhorarem.

-Não é isso que está me deixando irritada- Abaixo o tom da voz quando um casal da mesa ao lado me observa- Como você me avisa faltando algumas... Horas para o dia de amanhã?

Estou tão chocada e irritada que me esqueço das palavras. Minha mãe morde uma batatinha e engole em seco.

-Me desculpa mesmo. Pense pelo lado bom: se você for para lá, não vou precisar trabalhar tanto e vou passar mais tempo com você.

Pisco cinco vezes encarando o sorriso sem graça que aparece em seu rosto. Uma parte de mim sabe que ela está dando o seu melhor, mas a outra está muito irritada.

-Acho que sim- Apoio o cotovelo na mesa mesmo sendo falta de educação e bebo meu refrigerante em silêncio.

Os tons de rosa do meu arco-íris Onde histórias criam vida. Descubra agora