Lembranças

1.2K 67 31
                                    

Antônio

Sentir o mundo esmaecer ao seu redor era uma sensação esquisita. Tudo parecia fazer sentido ao mesmo tempo em que nada fazia. Era quase como um transe. Quase como assistir à própria vida passar diante dos seus olhos e perceber que você já não é mais o protagonista, que passou a ser um mero espectador, observando do lado de fora de uma janela embaçada.

Antônio não sentia dor, quase não sentia nada. Exceto por um ardor em alguma parte do corpo que ele não conseguia distinguir e uma sensação úmida e quente do sangue que se espalhava por todos os lugares. Além disso, havia apenas mais uma sensação... Uma saudade nostálgica de todas as pessoas que ele um dia amou e que gostaria de ver uma última vez antes de seus olhos se fecharem.

Não tentou se mover, mas sabia que se tentasse, não conseguiria. Era como se seu cérebro estivesse... Líquido. Não literalmente, é claro, mas "líquido" era a melhor palavra para descrever a sensação de dormência, de fraqueza.

Os olhos estavam arregalados, mas não enxergavam muita coisa. Pelo contrário, sua visão parecia diminuir aos poucos, como o final de um filme antigo, em que a tela se reduz e escurece gradativamente, até que só reste a escuridão e os créditos finais apareçam. No entanto, a pouca luz que ainda era absorvida por sua retina o permitia enxergá-la, mesmo que pelo canto do olho. Ele podia vê-la mover-se desesperadamente, com os cabelos bagunçados e manchas de sangue cobrindo suas mãos, roupas e parte do rosto. Antônio queria poder acalmá-la e dizer que tudo ficaria bem, mas não foi capaz de emitir som algum e tampouco tinha certeza de que tudo ficaria bem.

Talvez, pela primeira vez, não ficasse.

Pensou na própria morte por um segundo e soube, instantaneamente, que, por mais que desejasse sobreviver, morrer para salvá-la, sem dúvidas, valeria a pena. Faria qualquer coisa por Amanda, e nada no mundo o faria se arrepender de amá-la a tal ponto, pois, desde que a conhecera, viver ganhou um novo significado.

E foi somente depois do primeiro beijo que ele entendeu o que era se sentir realmente vivo.

Quando a visão embaçada começou a levar o rosto de sua amada para longe, ele se forçou a recriar a imagem em sua mente. Ainda não estava pronto para nunca mais enxergá-la, precisava de mais alguns segundos. Se fosse para ser contemplado pela morte, ao menos passaria seus últimos momentos ao lado dela.

Inconscientemente, acabou mergulhando em lembranças, mais especificamente, na primeira lembrança. No começo de tudo.

Pensar em seus últimos momentos, o fez também pensar nos primeiros.

E Antônio se lembrava de cada detalhe.

FLASHBACK

"Antônio se acomodou na poltrona da área externa da casa de Fred, bebendo um gole de sua cerveja. Seu amigo estava sentado na poltrona ao lado, mas não parecia ter notado a presença do lutador. Ele agitava as pernas enquanto encarava a tela do celular fixamente.

- Que droga, porque elas estão demorando tanto? - Fred murmurou para si mesmo.
- Tá tudo bem, Fredinho? - Antônio questionou, atraindo a atenção do amigo.
- Ah, sim... Quer dizer, não... Não sei. Elas estão demorando.
- Elas quem?
- A Amanda e a Lari.
- As tais amigas que você quer que eu conheça?
- Exatamente. Você vai adorar elas, Papato, mas eu tô começando a achar que elas desistiram. Já faz tempo que eu mandei a localização e elas não chegaram ainda. Eu já liguei pra portaria do condomínio três vezes só pra garantir que elas não estão paradas lá por terem a entrada barrada ou algo assim.
- Calma, irmão. Se elas estivessem barradas na portaria, iriam te ligar pra avisar. Você precisa relaxar.
- É que... A Lari, ela... Eu não sei explicar, ela mexe comigo. E nós somos só amigos, mas... Tem alguma coisa. Sabe quando você sente que tem alguma coisa muito boa que precisa acontecer entre você e outra pessoa?
- Pra ser sincero, não sei... - Antônio respondeu, arrancando um riso descontraído de Fred.
- Não dá pra explicar, é uma parada que você sente. Você vai entender quando encontrar a pessoa certa e aí vai lembrar do que eu te falei.
- Mas vocês não se conhecem só há uns dois meses? Aliás, você nunca me disse como se conheceram.
- Dois meses e três semanas, pra ser exato. - Fred riu. - Nos conhecemos em uma festa. Sabe a Bruna? Eu e a Bruna estávamos no mesmo camarote de uma balada e quando eu vi ela, fui cumprimentar, só que ela estava acompanhada de duas outras amigas.
- A tal da Amanda e a tal da Lari?
- Isso. Com a Amanda foi uma amizade quase instantânea, ela é demais. Você vai adorar ela. É engraçada, divertida, adora fazer piada ruim, tem as melhores histórias de vida que eu já ouvi e ainda é uma dançarina excepcional... Você PRECISA ver pra entender. Não tem como não rir com a Mands. Eu acho que vocês vão se dar bem, principalmente porque ela é médica e você é hipocondríaco.
- Ela parece ser massa. Vou aproveitar pra perguntar dessas manchinhas que apareceram na minha perna, será que é grave?
- Nem vem, Papato. Pelo menos no primeiro dia você tem que fingir que não é chato, se não, elas não voltam nunca mais.
- Eu não sou chato, pô.
- Chato é elogio pra você.
- Ok, fale logo da Lari antes que eu me estresse com você.
- Ah... A Lari... A Lari é incrível. Ela é maravilhosa, é linda, é engraçada. E a gente combina, sabe? Eu sei que combinamos. Ela é um pouco mais nova que nós dois, é professora de educação física, é extrovertida, ela é perfeita. Eu te juro, ela é sensacional.
- Papinho de apaixonado, hein, Fredinho. Nem beijou ainda e já tá emocionado?
- Pior que sim. AI MEU DEUS! - Ele quase gritou ao conferir uma notificação no celular. - SÃO ELAS. Elas estão entrando. Tá bom, fica todo mundo calmo. Respira fundo, tudo tranquilo. Elas tão aqui. Vão passar pela porta a qualquer segundo... Caralho, Papato, eu tô nervoso.

Momentos | DocshoeOnde histórias criam vida. Descubra agora