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Pétala

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Pétala

Acordei achando ser um pesadelo, mas não era.

O relógio marcava quatro da manhã. O meu corpo estava tenso, tão tenso que nem conseguia reagir aos barulhos dos tiros do lado de fora. Não estavam tão perto, mas eram muitos, como eu nunca tinha visto antes na minha vida.

Minha maior vontade era buscar minha filha no quarto ao lado, mas eu não conseguia reagir. Meus ombros estavam encolhidos, com medo de que alguma bala acabasse invadindo alguma janela da minha casa.

O Lennon já tinha levantado da cama. Eu não conseguia saber se ele me olhava, porque eu não o olhava. Por canto do olho, eu consegui ver sua sombra na frente do guarda-roupa, pegando alguns pertences.

Ele não podia sair dessa casa, mas eu não conseguia pedir pra ele ficar.

O choro da Jade enquanto correu para o meu quarto me fez despertar e em um pulo eu fiquei em pé, fora da minha cama, agarrando minha pequena no colo.

Abracei o corpinho pequeno com força, tentando acalmar minha filha. Ouvi o Lennon respirando fundo, depois ele saiu de perto do guarda-roupa para aproximar de nós duas. Ele colocou a mão nas costas da Jade, e deu um beijo no cabelo dela, mas não afastou o rosto quando começou a falar com ela.

Leão: Fica tranquila, Jade. Vai ficar tudo bem!

Jade: Eu tô com medo - ela colocou as duas mãos no ouvido, e se jogou pro colo do Lennon, que pegou a pequena nos braços.

Só então eu consegui ver o corpo dele.

Ainda usava a mesma bermuda de quando estava dormindo, mas agora com uma camiseta no ombro, e uma arma presa na cintura e outra maior nas costas. Ele não andava sem aquela coisa, porque sempre estava preparado pra qualquer emergência. Eu nunca quis saber onde ele escondia quando estava na minha casa.

Juro que um nó se formou na minha garganta.

Leão: Não precisa ter medo, vou cuidar de tudo.

Jade: Fica aqui comigo, pai.

Sem conseguir manter meu corpo de pé, acabei caindo sentada na cama, enquanto puxava o ar com força, porque a minha sensação era de não conseguir respirar.

Leão: Vou ficar. Só tenho que resolver uma coisinha - encarei ele, que beijou o cabelo da nossa filha mais uma vez - Te amo, não fica com medo. Já vou voltar.

Ela tentou argumentar e pedir que ele ficasse, mas ele não ouviu. O Lennon só continuou acalmando a Jade, e colocou ela na cama do meu lado. Quando os tiros pareceram ainda mais fortes, a Jade soltou um gritinho assustado e caiu na cama.

Eu olhei pra ele. Ele me devolveu o olhar.

Tudo aconteceu rápido demais, mesmo parecendo em câmera lenta. Senti uma lágrima escorrendo no meu rosto e neguei com a cabeça, através do olhar tentando pedir que ele não fosse porque eu estava morrendo de medo.

Mas ele foi. Deu pra ver, quando respirou fundo e desviou o olhar, que ele não queria me encarar por muito tempo, porque poderia acabar desistindo.

Nem uma palavra foi dita, ele só saiu.

Saiu e a Jade gritou, chamando o pai dela.

Mesmo sem nenhuma reação, mesmo só querendo ajoelhar e rezar, eu tive que ser mais forte, deixar tudo de lado e acalmar a minha filha.

Os tiros duraram horas. Angustiantes e torturantes longas horas. O intervalo de tempo entre um tiro ou outro era muito curto. Eles não estavam brincando. Eu ainda não conseguia entender se era polícia ou alemão. Não liguei a televisão, e nem peguei o meu celular.

Por duas horas, fiquei no chão do quarto, com a Jade no meu colo. Ela dormiu pouco. Por vinte minutos, eu acho. Grudada comigo, deitada no meu colo, e no chão, ela fechou os olhinhos e conseguiu descansar.

Já era dia. Devia ser quase seis horas da manhã. O intervalo de tempo entre os tiros aumentaram, mas ela acordou assustada mesmo assim, me olhando, e sentou no meu colo.

Pétala: Calma, amor. Fica calma!

Jade: Meu pai chegou? - pela minha falta de reação, ela teve uma resposta - Mãe, cadê o leãozinho? Me dá meu leãozinho.

Ela não veio para o meu quarto com ele, certo que tinha esquecido o leão de pelúcia entre os lençóis da caminha dela.

Pétala: Vou pegar pra você - sussurrei pra ela.

Eu deixei minha filha na cama, peguei meu celular, e caminhei até o quarto dela, para pegar seu leaozinho de pelúcia. Não demorou até minha pequena dormir de novo, grudada com o leão que o pai lhe deu. Então eu desbloqueei meu celular, entrando nas redes sociais.

Cada vez ouvíamos menos os barulhos de tiros do lado de fora, o helicóptero que antes sobrevoava a favela, já tinha ido embora.

Mas ele ainda não tinha voltado.

As publicações mostravam que o Mendonça tinha sido preso em uma operação policial, diziam não saber como ele estava vivo, porque não entraram na favela pra prender, e sim para matar. Havia algumas fotos e vídeos do confronto, pessoas conhecidas postando homenagens, fotos de homens e meninos envolvidos no crime, que faleceram nas ultimas horas. Contei mais de dez mortes até então. Precisei parar de ler para não surtar. 

Entrei no meu WhatsApp, haviam várias mensagens da Bruna e também da família do Lennon. A primeira mensagem que entrei foi do Kauã, ele me perguntava se eu estava bem, se a Jade estava bem, e se o irmão dele estava em casa com a gente. Mas fazia horas que ele havia me mandado as mensagens.  

Antes que eu conseguisse responder alguém, bateram na porta de casa. 

O Lennon não batia, ele tinha a chave e podia entrar a hora que ele quisesse. Então eu entendi que toda a minha preocupação não foi atoa, não foi por nada... alguma coisa tinha acontecido com ele. 

Aos prantos, da forma como consegui eu corri até a porta de casa e abri de uma vez. Do outro lado, o Pato abaixou a cabeça quando me viu.  

Não pensei na Jade, não pensei em mim e nem no Lennon. 

Eu só pensei na dor. 

Era difícil de explicar, mas senti como se uma faca entrasse no meu peito. Era tão forte, que eu não consegui não chorar alto. Nem mesmo consegui me manter de pé. 

As mãos do Pato tentaram me segurar, quando eu encostei na porta de casa e acabei caindo no chão. 

Eu não ouvia a voz dele, meu cérebro simplesmente bloqueou o som, pra que eu não tivesse que escutar o que não queria. Mas eu via a boca dele mexendo, entendia ele falando que o meu Lennon estava no hospital, que tinha sido baleado, assim como tantos outros caras. 

Era o pensamento mais egoísta da minha vida, mas eu não queria saber dos outros. Eu não me importava com os outros. Eu só precisava saber dele. 

Eu só precisava que ele ficasse bem. 

Me esperaOnde histórias criam vida. Descubra agora