Prólogo, parte I - O sol

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O sol mal surgira no horizonte quando Reynard abriu os olhos. Por alguns instantes, ele ficou ali naquela zona entre o sono e o despertar, sem ter certeza de que estava mesmo ali, sem ter certeza do que era real, encarando o teto de palha do seu quarto com uma mente quase que vazia. 

E então, quando finalmente veio a certeza de que não estava em um sonho, ele sorriu e imediatamente saltou da cama. Era finalmente o dia. O dia em que alguém como ele, um simples órfão, se tornaria algo MAIS. Não um moleque ranhento, não um pivete qualquer. Um guerreiro como Erwald. 

Reynard suspirou. "Certo, talvez não COMO Sir Erwald". Parecia um pouco arrogante se comparar ao homem mais forte do mundo. A própria alcunha "homem mais forte do mundo" também era incrivelmente arrogante e talvez até ignorante, afinal, como ele poderia concordar com essa afirmação se Reynard passara toda a sua vida em Arania? Todo o resto do mundo, ele conhecia apenas por livros. Os outros países do continente de Ennaria, os outros três continentes, os oceanos. Todos apenas belas imagens em livros, pinturas de paisagens que ele jamais vira. Mas agora...agora tudo mudaria. 

A partir daquele dia. Reynard se tornaria um cadete. Poderia participar de missões. Poderia participar de batalhas. Poderia finalmente ver o mundo lá fora. Seria respeitado como um jovem homem e não mais tratado como uma criança. 

Reynard sentou-se na cama, lavou o rosto e os pés, andou animado até a cozinha...

...e ficou ali, paralisado. 

No dia anterior ele havia passado sua farda meticulosamente. Ele sabia que nada menos que uma aparência impecável seria aceito numa admissão a uma academia militar. Cuidara de suas botas, perfeitamente engraxadas. Polira sua espada, novinha em folha...presente de Sir Erwald. Tudo estava preparado e perfeito. 

Mas ali, no chão, o que ele encontrara pela manhã eram apenas trapos rasgados. Eles até mesmo rasgaram suas botas com lâminas, provavelmente as mesmas espadas que à noite usariam para fazer seus juramentos. 

Somente sua espada escapara do vandalismo...pois ele dormira com ela. Abraçado. Ele se sentira tolo e infantil ao fazê-lo na noite anterior...mas ao menos a espada estava a salvo. 

Mas de que adiantava? Sem seu uniforme, ele não poderia passar pela cerimônia. Ele não poderia se tornar um cadete. Seu sonho fora por água abaixo. 

No fim das contas, naquele dia ele continuaria sendo apenas Reynard, o órfão da árvore. 

Sua visão começou a embaçar e a primeira lágrima rolou por seu rosto. Mas não, não era uma lágrima de tristeza. Era  ódio. Subindo pelo seu peito, pela sua garganta como lava fervente. Ele queria matá-los, reduzi-los a trapos menores que o que sobrara de suas roupas. Ele queria destruí-los. Ele queria reduzi-los a pó. 

Sua mente ficou em branco, tanto quanto seus olhos ficaram cegos de raiva. E então Reynard pegou sua espada e correu. Apenas correu, correu e correu. 

Correu pelas pradarias, correu pelas plantações. Correu e correu...até que ele se viu em um lugar familiar. 

Uma cerca, vários espantalhos. Escudos e espadas de madeira aqui e ali. Era o campo de treinamento. 

Completamente vazio. 

Não havia ninguém treinando ali - claro que não. Aquele era o dia da cerimônia de admissão dos cadetes. Era um dia de festa. Os oficiais com certeza já estavam se embebedando em algum canto do castelo desde o dia anterior, e os jovens escudeiros que se tornariam cadetes estavam se preparando para a cerimônia. 

Mas não ele. Para ele, tudo havia acabado. 

Ele sabia quem era o responsável. Ou ao menos quem era o principal responsável. "Gercian", pensou com desgosto, como se o próprio nome soasse tão amargo na sua mente quanto soaria na sua língua. Gercian Fleroux, o terceiro filho homem do poderoso Duque de Fleroux. Um fidalgo de linhagem antiga que o odiava apenas por existir - e ousar estar ali. 

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