14 - ABRINDO O CORAÇÃO

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SAMANTHA CLARCK


Sentir o corpo do professor Evans tão próximo ao meu era estranhamente confortável. Tão confortável que consegui abrir os olhos mesmo estando naquela altura.

- Continua falando, ainda não me contou o motivo que você mudou pra cá.

- Tudo bem - Senti sua respiração pesar antes de continuar - Um mês antes da minha mãe morrer eu fui até a casa dela buscar algumas coisas. Estava tudo cheio de poeira porque os últimos meses de vida dela foram em um hospital recebendo cuidados paliativos então a casa ficou um pouco de lado. Como gosto de tudo limpo e organizado comecei a arrumar o seu quarto e encontrei uma caixa.

- Desculpa perguntar, mas o que ela teve?

- Hepatoblastoma, um tipo raro de câncer no fígado.

- Eu sinto muito! Muito mesmo. Não imagino o quanto foi difícil passar por isso.

- Foi difícil sim. Ter câncer não é receber um diagnóstico, Samantha. O "ter câncer" vai além de um laudo médico, protocolos quimioterápicos e receitas medicas. Eu via a doença matar minha mãe aos poucos, observei seu corpo perdendo a forma que tinha sem poder fazer nada e esperava milagrosamente que o medicamento fizesse efeito pra que ela conseguisse recuperar seu peso. Eu olhava para as cicatrizes dela e me lembrava todos os dias da causa delas. A via cansada sem nem mesmo fazer esforço algum e sabia que era somente a doença tomando parte do corpo dela. Saber lidar com tudo aquilo demandou muito de mim, eu vivi em função dela e faria outras mil vezes, aquilo não era a parte difícil pra mim. Observar as pessoas vivendo de forma saudável e saber que ela não estava, isso sim era difícil. Quando a via mal eu pensava: "Deus, até quando ela vai conseguir ser forte?" , mas eu não tinha resposta. Isso sim era ainda mais difícil. Apenas confiar e tentar seguir minha vida como se estivesse tudo bem, isso machucava e era difícil.

- Sinto muito que tenha passado por isso.

- Existiam momentos em que tudo o que eu precisava era de um abraço bem apertado dela e ouvir um "vai ficar tudo bem", mesmo que eu soubesse que não ficaria. Então vi minha mãe me deixar aos poucos, até ela ir de vez.

Senti uma lágrima escorrer no meu rosto só de imaginar. Se aquilo fosse com a minha mãe eu morreria junto, ele foi muito forte ao passar por tudo aquilo.
Coloquei minha mão sobre a dele que ainda estava na minha perna.

- Tenho certeza que sua mãe teve muito orgulho de você.

- Espero que sim. Ela era tudo pra mim. - Ele se ajustou um pouco me deixando ainda mais colada a ele e continuou  - Continuando a história da minha mudança, enquanto eu arrumava as coisas dela encontrei uma caixa cheia de fotografias e cartas.Tinha uma foto da minha mãe beijando um homem e atrás tinha uma pequena declaração dele pra ela, com sua assinatura. Continuei olhando e encontrei uma carta escrita pelo mesmo homem da foto, que depois eu descobri ser o meu pai.

- O que a carta dizia?

- Ele falou que não poderia mais voltar pra ela, que pelo bem dela seria melhor que não se vissem mais, que a família dele nunca permitiria e que ela podia seguir a vida sozinha, falou que estava mandando um valor para ajudar nos custos que ela teria comigo nos primeiros anos. No mesmo envelope tinha um cheque com 10 mil dólares que minha mãe nunca depositou. Ela não aceitou o dinheiro dele.

- Nossa! Quem abandona o próprio filho? Que homem horrível!

- É, ele é horrível. Eu cresci sem uma figura paterna, minha mãe se desdobrou em duas pra dar conta de tudo, trabalhava dia e noite pra me dar uma boa educação. Como ela era brasileira e tinha dupla cidadania, fomos para o Brasil quando eu fiz 5 anos e retornamos quando fiz 17. Ela me disse que meu pai tinha morrido quando eu era criança, eu só sabia o primeiro nome dele e que ele era professor, por isso eu quis ser professor também, seria a única coisa em comum com o homem que eu nunca tinha conhecido e admirava por achar que ele era alguém admirável.

- Nossa, cada vez fico mais chocada com essa história. - Falei sentindo um pesar por tudo o que ele viveu.

- Quando voltei ao hospital perguntei mais uma vez e ela tentou desconversar mas contei que encontrei sua caixa e a carta, ela se sentiu pressionada e acabou contando a verdade. Me contou que ele nos abandonou quando eu tinha 3 anos e ela não queria que eu crescesse achando que fui rejeitado, porque ela me amava muito. Me contou um pouco da história deles também. - Ele respirou fundo antes de continuar, eu imaginei que estava doloroso pra ele falar sobre aquilo - Depois que ela morreu eu comecei a procurar por ele, eu queria saber mais dele, queria enfrenta-lo e descobrir porque ele nos abandonou. Por isso que eu vim pra Santa Mônica, Samantha. Vim atrás desse homem.

- Ele mora aqui?

- Sim, inclusive eu já o encontrei. É casado, tem um filho e é muito respeitado em seu trabalho.

- E como foi? O que ele falou quando soube que você é o filho dele?

- Ele não sabe ainda, não consegui contar.

Quando ele terminou de falar as luzes acenderam e ouvimos gritos por todo o lado de pessoas comemorando, mas eu não gritei. Ao contrário do que pensei não fiquei feliz por ter energia de novo. Foi como se a bolha que estávamos tivesse sido estourada.

- Finalmente! Tá vendo, nem foi tão ruim assim. - Evans falou me soltando e se arrumando no banco, afastando o seu corpo do meu.

- Obrigada pela ajuda, você tornou mais fácil.

- Eu que agradeço por me ouvir, nunca tinha contado toda a história pra alguém dessa forma, só uma pessoa sabe mas foi porque ela acompanhou todo o trajeto até aqui.

A roda gigante começou a se movimentar de novo e as pessoas foram descendo até chegar a nossa vez. As pessoas responsáveis pelo parque anunciaram que precisariam encerrar as atividades porque poderia ter outra queda de energia.
Ficamos em silêncio depois que descemos e todo o caminho de volta até a minha casa. Não precisei ensinar o caminho, ele tinha uma boa memória e lembrou de quando me levou da última vez.

- Obrigado pela noite, me diverti muito com você, Samantha. - Ele falou assim que parou em frente a minha casa.

- Disponha, professor. Tem muitos outros lugares pra você conhecer quando quiser.

- Combinaremos o próximo! 

Depositei um beijo no seu rosto e ele abriu um sorriso.

- Até amanhã, professor Evans.

- Até amanhã, Samantha.

Saí do carro dele com meu novo panda de pelúcia e assim que entrei ouvi seu carro dando partida. Minha mãe ainda não tinha chegado, estava com o George, então fui direto para o quarto descansar para a semana seguinte.

MEU ADORÁVEL PROFESSOROnde histórias criam vida. Descubra agora