OS PRECURSORES: LELAND, MURRAY E GRAVES

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Um dos primeiros e mais destacados membros desse grupo foi Charles
Godfrey Leland (1824-1903), um folclorista americano, ocultista, escritor,
aventureiro, um verdadeiro soldado da fortuna. Ele atingiu a maturidade
durante o apogeu do romantismo e tomou parte ativa na revolução francesa de
1848, quando estudava na Universidade de Sorbonne, em Paris. Foi também
enquanto morava em Paris que Leland foi atraído pela primeira vez pelas
teorias históricas de Michelet, que se encontrava então no auge de sua carreira,
aplicando as ideias de Michelet em seus estudos e escritos até o fim de sua vida.
Depois de seu retorno aos Estados Unidos, Leland foi avassalado pela Guerra deSecessão (1861-1865) e serviu o exército da União (nortista) combatendo na
batalha de Gettysburg. Já na maturidade, Leland mudou-se para a Inglaterra,
viajou extensamente pela Europa e tornou-se uma autoridade em folclore
cigano. Escreveu 55 obras sobre grande variedade de assuntos, mas sua
contribuição para a bruxaria moderna deriva de seu livro mais famoso e
influente: Aradia, or the gospel of the witches, publicado em 1899 [editado no Brasil
com o título Aradia, o evangelho das bruxas].
Charles Godfrey Leland, folclorista norte-americano, erudito e autor de Aradia, foi discípulo de Michelet e procurou evidências que
validassem a tese de Michelet de que a bruxaria era uma sobrevivência do paganismo pré-cristão.
A história verdadeira por trás da escritura de Aradia é tão intrigante quanto o
próprio livro. Em 1886, aos 62 anos de idade, Leland mudou-se para a Itália a
fim de estudar as tradições populares italianas, particularmente a bruxaria
italiana. Um de seus principais informantes foi uma camponesa chamada
Maddalena, uma figura enigmática sobre quem se conhece relativamente
pouco. Ela aparente trabalhava como quiromante, lendo a sorte das pessoas nas
ruas de Florença. Leland acreditava que ela fosse uma bruxa hereditária e a
contratou como assistente em suas pesquisas a fim de encontrar matérias
folclóricas para ele. Leland teria ouvido rumores sobre a existência de um
manuscrito que conteria os antigos segredos da bruxaria italiana, e pressionou
Maddalena – uma jovem bruxa toscana – para lhe conseguir uma cópia. Leland
jamais viu um manuscrito real, mas depois de insistir durante dez anos,
Maddalena lhe entregou alguns materiais escritos de próprio punho, que
haviam sido copiados de outro texto ou transcritos de fontes da tradição oral,ou ambos os casos. Esse documento afirmava ser o livro de uma religião secreta
das bruxas que estava amplamente difundida entre os camponeses e prosperava
sob a superfície católica da sociedade italiana. Foi esse documento, acrescido
dos comentários de Leland, que se transformou em Aradia.
Aradia apresenta o quadro de um culto organizado de adoração à deusa,
centrado na figura de Diana, a antiga deusa romana da Lua, das florestas e do
parto de crianças. De acordo com Leland, essa “religião antiga” ainda era
bastante forte entre os camponeses da região da Romagna, onde chegava a
dominar aldeias inteiras. O sistema de crenças das “bruxas”, tal como Leland o
descreveu, era tão antigo quanto elaborado. Doreen Valiente resume suas
características mais salientes:
A crença básica dessa religião era a de que a primeira e mais poderosa das deidades era feminina
– a deusa Diana. “Diana foi a primeira, criada antes de toda a criação; nela estavam todas as
coisas; a partir dela, a primeira escuridão, ela se dividiu; na escuridão e na luz ela foi dividida.
Lúcifer, seu irmão e filho, ela mesma e sua outra metade, era a luz.” A lenda prossegue dizendo
que Diana teve uma filha, gerada por seu irmão Lúcifer, “que havia decaído”, a quem chamou
Aradia. Apiedando-se dos pobres e dos oprimidos que viviam sob a tirania de seus amos, a deusa
enviou Aradia à Terra a fim de tornar-se a primeira das bruxas e ensinar a bruxaria a todos que a
quisessem aprender, estabelecendo assim um culto secreto, em oposição ao cristianismo.
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Aradia não despertou grande interesse quando foi publicado pela primeira
vez. O mundo ocultista estava então mais preocupado com os exotismos da
Teosofia, e o mundo acadêmico mal deu atenção à obra que Leland alegava
haver descoberto. Hoje, os estudiosos em geral consideram esse livro uma
criação híbrida, na melhor das hipóteses – uma mistura das próprias crenças de
Leland com algumas sobrevivências folclóricas e herméticas genuínas que ele
havia conseguido desvendar de uma forma ou de outra. O historiador Elliot
Rose afirma:Margaret Murray (a terceira a partir da esquerda,com seuscolegas da Universidade de Manchester em 1908) foi a primeira estudiosa a
dissecar uma múmia. Embora não fosse historiadora, e sim egiptóloga, as especulações históricas de Murray ajudaram a preparar o caminho
para o surgimento da bruxaria neopagã.
A obra inteira pode ser lida [...] como se um de seus autores estivesse conscientemente tentando
estabelecer que a bruxaria era um culto dessa natureza em particular, e que introduziu no livro,
intencionalmente, material destinado a provar que este era um autêntico livro de magia.
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Os métodos de “pesquisa” de Leland eram deploravelmente deficientes, de
acordo com os padrões modernos (embora bastante normais para sua época), e
ele se dispôs, de bom grado, a ser conduzido por sua informante. Grande
conhecedor do folclore e permeado pelas ideias de Michelet, Leland leu no
material que lhe forneceu Maddalena tudo quanto ele já sabia – ou pensava que
sabia – a respeito de bruxaria. Maddalena, por seu lado, prontamente discerniu
o que Leland estava procurando e começou a adaptar as informações de que
dispunha para adequarem-se às expectativas dele. Ela era, afinal de contas, não
uma arquivista dedicada, mas uma adivinha profissional perita em “ler o
futuro” de seus clientes. No prefácio que escreveu para Aradia, Leland chegou a
ponto de reconhecer que “esta mulher, por sua longa prática, aprendeu
perfeitamente o que poucos entendem, justamente o que eu quero, e como
extrair estas informações de outras pessoas semelhantes a ela”.Frontispício para o livro Aradia, de Charles Leland,1899, uma dasfontes da bruxaria moderna.
Mesmo a compassiva descrição do Aradia feita por Valiente (ver p. 186) sugere
a invenção de um erudito. O livro se aproveita de um conhecimento anterior do
gnosticismo, do paganismo e da mitologia para compor boa parte de seu
conteúdo. E a essa mistura, ele acrescenta uma paródia embaraçosa da história
bíblica da criação e um ataque literário ao cristianismo. Esta combinação
particular é bastante plausível na mente de um homem de letras do século XIX,
mas não é absolutamente provável que suceda como um artefato histórico.
No entanto, as ideias expressadas em Aradia tiveram uma influência real e
contínua. A obra de Leland foi firmemente adotada – parte dela, palavra por
palavra – pelo movimento da bruxaria moderna. Leland foi o primeiro a usar o
termo “a Religião Antiga” (la vecchia religione); alguns dos encantamentos e
rituais utilizados pelos bruxos modernos são simples passagens retiradas do
Aradia, virtualmente sem modificações. Aradia também atrai as bruxasmodernas por uma outra razão: ainda que o foco “feminista” da construção de
Leland fosse uma singularidade em seu próprio tempo, ele é bem mais
compatível com o nosso próprio enfoque moderno, que busca uma religião que
apoie seus entusiasmos culturais e que endosse suas agendas sociais. Todavia,
provavelmente o livro de Leland não teria tido a influência que teve não fosse a
credibilidade que, segundo se afirma, lhe foi conferida pela obra de Margaret
Murray (já mencionada brevemente nas páginas 55 e 56).
Em 1921, Murray espantou o mundo acadêmico e os historiadores com uma
nova e sensacional teoria sobre bruxaria em seu livro The witch cult in Western
Europe [publicado no Brasil com o título O culto das bruxas na Europa Ocidental].
Murray (1863-1963) era antropóloga e egiptóloga, não uma historiadora
medievalista, mas desenvolveu uma fascinação pela bruxaria paralela ao seu
interesse pessoal pelo folclore britânico. De acordo com o relato da própria
Murray, ela morava em Glastonbury – o local legendário onde o rei Artur foi
sepultado – quando alguém (a quem ela jamais identificou) lhe sugeriu que
aquilo que a Igreja chamara de “bruxaria” era realmente uma remanescência da
religião da fertilidade pré-cristã que, em determinada ocasião, havia dominado
a Europa. Murray, aparentemente, não tinha conhecimento das teorias de
Michelet e de Leland; para ela, tal conceito foi uma revelação que a conduziu a
um estudo intenso dos registros dos julgamentos presididos pela Inquisição.
Embora Murray, aparentemente, não tivesse consciência de suas raízes
oitocentistas, ela prontamente relacionou a ideia de bruxaria como paganismo
a outra estrutura com a qual já estava familiarizada: a temática da morte e
renascimento da Natureza, estudada por Sir James George Frazer no livro The
golden bough (1890) [publicado no Brasil com o título O ramo de ouro]; inclusive a
ênfase dada por Frazer à regularidade dos assassinatos sacrificais dos reis
sagrados. Depois de longas investigações, Murray argumentou que “bruxaria”
era o termo adotado pela Inquisição para designar uma religião mais antiga que
adorava a fertilidade e a opulência da natureza. Pelo menos inicialmente, essa
religião não tinha nada a ver com uma oposição ao cristianismo, mas
transformou-se em um movimento pagão clandestino de resistência
justamente em função das tentativas da Igreja para erradicá-lo. Da forma como
Murray descreveu esse culto, ele era baseado em antigas noções de polaridade
sexual como a força propulsora por trás de todos os elementos da natureza – a
interação macho/fêmea, positiva/negativa, que, em todos os níveis, origina a
tensão energética que faz com que a própria natureza funcione. A religião
natural age a partir desse relacionamento em seus rituais sazonais. O “culto dasbruxas”, portanto, representava o infinito ciclo sexual do nascimento,
crescimento, morte e renascimento, que constitui o próprio ritmo da Vida e da
Natureza.
Murray acreditava que a deidade original por trás da religião natural era uma
figura bipolar, “bissexual”, que podia se apresentar como masculina ou
feminina, dependendo do que as circunstâncias exigissem.
Depois de reexaminar os documentos sobre os julgamentos da Inquisição, ela argumentou que a
bruxaria podia ser rastreada até “os tempos pré-cristãos e que parecia ser a antiga religião da
Europa Ocidental”, centrada em uma divindade que podia encarnar-se em um homem, uma
mulher ou um animal. Uma de suas formas era o deus cornudo de duas faces, conhecido pelos
romanos como Janus ou Dianus. Murray escreveu que a forma feminina do nome – Diana – era
encontrada por toda a Europa Ocidental como a líder das bruxas. Por causa disso, Murray cunhou
a expressão “Culto Diânico” para denominar essa religião, embora ela ponderasse que o deus
raramente aparecia em forma feminina, e que uma deidade masculina aparentemente acabara por
superar a feminina.
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Robert Graves, poeta, romancista e ensaísta inglês, autor de Adeusa branca,contribuiu com inúmerosconceitos para a evolução inicial da
bruxaria gardneriana.
Como um eco espectral da estratégia retórica de Michelet, Murray aceitou as
descobertas factuais dos julgamentos de bruxas na Idade Média e na
Renascença, mas reinterpretou seu significado. Os inquisidores registravam
que o Demônio aparecia durante os rituais de bruxaria na forma de um bode ou
de outro animal. Murray escreveu que esse “demônio” era de fato apenas um
sumo sacerdote humano usando um traje ritual. Seus adornos incluíam chifres
e peles de animais peludos que representavam a potência carnal. Esse foium dos indicadores dados à dra. Murray por seu informante desconhecido em Glastonbury;
revelou-se a chave que destrancou a porta que ocultava o mistério inteiro. Os cristãos chamaram a
esta criatura de “Diabo”, e parece que as bruxas acabaram finalmente por aceitar também este
termo.
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Murray acreditava que ela própria havia descoberto o significado secreto por
trás da história religiosa da Europa. E muitos outros acreditaram também; suas
teorias originaram uma enorme celeuma quando apareceram pela primeira vez
– principalmente em função de suas credenciais e de sua reputação acadêmica.
Finalmente, suas ideias se tornaram a interpretação geralmente aceita sobre
bruxaria; de fato, foi ela quem escreveu o verbete “bruxaria” nas edições da
Encyclopaedia Britannica de 1929 a 1968. Hoje, todos os eruditos acreditam que
Murray não estava simplesmente enganada – ela estava completa e
embaraçosamente errada em quase todas as suas premissas básicas. Em dois
livros publicados posteriormente, The god of the witches (1931) [publicado no Brasil
com o título O deus das feiticeiras] e The divine king of England (1954), ela estendeu
sua tese ainda mais além, afirmando que a doutrina pregada pela religião das
bruxas, de que o rei deve morrer e renascer, não somente sobreviveu como
efetivamente dominou a realeza britânica a ponto de muitos reis ingleses terem
sido ritualmente assassinados, consoante aos ritos determinados pelo culto. À
medida que as opiniões de Murray se tornavam cada vez mais extremadas, um
progressivo desleixo em sua erudição se tornava cada vez mais evidente. Elliot
Rose, um erudito anglicano que não tinha por ela a menor simpatia,
caracterizou a obra de Murray como “um disparate insípido”. Mircea Eliade,
um crítico mais gentil e generoso, declarou que “nem os documentos com os
quais ela escolheu ilustrar sua hipótese, nem os métodos empregados em sua
interpretação são convincentes”.
11 Uma séria crítica à obra de Murray é a de que
parece ser uma ladainha de erros acadêmicos. A autora tomou práticas de
bruxaria específicas de determinados lugares e épocas, como os coven (uma
ocorrência posterior peculiar à Escócia) e os sabás (que ela transforma no centro
de seu culto de fertilidade, embora não sejam mencionados em quaisquer
fontes históricas anteriores ao século XV), e fez delas uma releitura que as
inseria na história da bruxaria como um todo, como se tivessem sido a parte
central do culto das bruxas desde os seus primórdios.
Sem dúvida, o método com que Murray empregou suas fontes no geral é
constrangedor. Ela não somente forçou as evidências para que se encaixassemem sua teoria como ignorou vários e extensos materiais, particularmente sobre
a Idade Média, que se encontravam facilmente a seu alcance e que,
ironicamente, em alguns casos teriam até mesmo fortalecido suas posições. A
obra de Murray foi submetida a duras críticas durante os últimos estágios de
sua carreira e sofreu total rejeição após sua morte, em 1963. Por volta de 1970, a
ruína de sua cultura acadêmica, de sua tese e até mesmo de sua reputação se
haviam completado. As teorias de Murray, porém, exerceram enorme
influência; um prestígio que seria mantido por longo tempo mesmo depois que
essas próprias teorias já haviam sido rejeitadas pelos eruditos do meio
acadêmico. Hutton observa que, durante muitos anos, elas “gozaram da curiosa
posição de uma ortodoxia aceita por todos, exceto por aqueles que se haviam
tornado especialistas nesse assunto”.
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Apesar de suas sérias deficiências, a obra de Murray capturou a imaginação
do público, pois se embasava em uma realidade histórica que de outro modo
teria sido mantida no esquecimento – a saber, que o paganismo tinha sido
suprimido, mas não erradicado pelo cristianismo; que as crenças populares
pagãs não se haviam extinguido com a introdução do cristianismo, mas, ao
contrário, permanecido e constituído um substrato básico para a bruxaria. Uma
investigação honesta revela que alguns – de fato, muitos – costumes, crenças e
símbolos pagãos sobreviveram através da Idade Média e chegaram até os nossos
dias. O que está em questão não é se existiram sobrevivências do paganismo,
mas quantas elas eram, de que tipo e em que extensão somaram alguma
coerência como corpo organizado de crenças ou práticas.
Também a despeito de suas distorções dos fatos (ou justamente por causa
delas, como pode ser argumentado), os trabalhos de Murray constituíram uma
preparação importante para o surgimento posterior da bruxaria moderna. Suas
teorias puseram em movimento uma onda de entusiasmo pelas coisas antigas,
nativas e pagãs que permanece conosco até hoje e ainda está crescendo em
força. As construções teóricas de Murray, como as criações de Michelet e
Leland, foram generosamente mescladas às tradições neopagãs. Ela contribuiu
com ideias e terminologia, bem como com a descrição detalhada de práticas que
foram aceitas pelo movimento da bruxaria moderna. Sua erudição acadêmica
pode ter sido ilusória, mas seus resultados foram muito reais. Murray não foi a
única responsável pelo início do reavivamento da bruxaria, mas preparou o
cenário para sua chegada praticamente sozinha.
A influência de Robert Graves (1895-1985) difere da dos outros autores aqui
discutidos porque seu trabalho não foi uma das fontes diretas para a criação dabruxaria moderna, mas foi introduzido mais tarde, por intermédio de um de
seus primeiros prosélitos (veja Capítulo 10). Porém, uma vez introduzidas, as
ideias de Graves rapidamente se difundiram e tiveram um efeito poderoso
sobre a maneira como a feitiçaria moderna se desenvolveu e o aspecto que
assumiu.
Graves foi um poeta, ensaísta e romancista inglês. É o autor de Good-bye to all
that; I, Claudius; King Jesus e inúmeras outras obras menos conhecidas. Seu
impacto sobre a formação da bruxaria moderna deriva de seu livro de 1948, The
white goddess [publicado no Brasil com o título A deusa branca: uma gramática
histórica do mito poético]. A deusa branca é um livro estranho – volumoso e difuso,
tanto erudito como ingênuo, tanto brilhante como confuso. Mas se o próprio
livro é estranho, a maneira como foi escrito é ainda mais excêntrica. Em 1944,
Graves vivia em Devonshire quando foi tomado por
uma súbita obsessão avassaladora que o compeliu a suspender o trabalho dedicado ao romance
histórico que pretendia escrever em favor da descoberta do significado interior de um poema galês
antigo e misterioso, chamado The battle of the trees. Em três semanas, segundo ele próprio nos
conta, tinha escrito um livro de 70 mil palavras, chamado inicialmente The roebuck in the thicket,
que, no devido tempo, transformou-se em A deusa branca. Sua mente trabalhava tão furiosamente
sob influência dessa inspiração, disse ele, que sua caneta mal conseguia acompanhar o fluxo das
ideias.
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Conforme indica o subtítulo de Graves, seu livro trata basicamente das fontes
do mito e da inspiração poética. Não é absolutamente um trabalho de história
ou de antropologia, mas um tour de force literário e autoconsciente. Não
obstante, Graves se alicerçou em sua considerável (ainda que excêntrica)
erudição para reunir os elementos de uma antiga e pré-cristã religião da Deusa,
que deu origem à linguagem original do mito poético. Desse modo, para Graves
a busca pela musa da inspiração poética conduzia diretamente às deusas
primordiais da fertilidade, adoradas na Europa pagã, e à religião ou às religiões
da fertilidade, frequentemente orgiásticas, que cresceram em torno delas. Tal
como Graves retrata essa religião, ela se assemelha a uma variação da versão
descrita por Murray. Graves acreditava que a poesia fora originalmente criada
para “mitologizar” os ciclos da Natureza, escalando-os na forma de uma
história dramática do rei-deus que nasce e floresce com o crescimento do sol de
verão, que luta com o sol evanescente do outono e que morre no escuro e no frio
do inverno, somente para renascer na renovação da primavera.
A Deusa era tanto venerada como desejada pelo deus-rei. Ela era a Natureza, aAbundância e a Fertilidade; ela era a Terra. Era a mãe, a esposa e aquela que o
recebia na morte, mostrando todos esses atributos de forma simultânea. Assim,
Graves a retratava de “forma tríplice”, em uma sequência de três fases de
desenvolvimento que constituíam um paralelo com a lua crescente, a lua cheia e
a lua minguante (sendo a Lua igualmente o seu símbolo). “Ela era a jovem
donzela da lua nova, a gloriosa dama da lua cheia e a anciã sábia do quarto
minguante.”
14 De acordo com Graves, a religião original e universal da Deusa
foi destituída e suprimida por uma cultura patriarcal emergente, que era de
natureza violenta, guerreira e hostil à Natureza. Os últimos quatro mil anos da
história da humanidade, portanto, representaram um declínio espiritual
constante desde a Idade do Ouro original e pré-patriarcal.
Em seu capítulo final, intitulado “O retorno da Deusa”, Graves decretou o
fracasso e a irrelevância do que denominou “Adoração do Deus-Pai”.
15 Ele
sinceramente acreditava que já estava quase chegando o tempo em que a
humanidade estaria madura para o retorno da Deusa, mas, até então, as
perspectivas seriam desalentadoras. Graves não era um otimista no curto
prazo:
Não vejo mudanças para melhor até que tudo se torne muito pior do que é agora. Somente após
um período de total desorganização política e religiosa é que o desejo suprimido das raças
ocidentais, que se volta para alguma forma prática de adoração da Deusa, cujo amor não é
limitado pela benevolência maternal [...] poderá encontrar finalmente uma satisfação.
Porém, quanto mais adiada for sua hora e, portanto, tanto mais exauridos forem pela
imprevidência irreligiosa do homem os recursos naturais do solo e do mar, tanto menos
misericordiosa será sua máscara quíntupla, e mais estreito será o âmbito de ação concedido a
qualquer que seja o semideus escolhido e tomado por ela como seu consorte temporário na
divindade. Vamos, então, apaziguá-la com antecedência.
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Ao estabelecer essa conexão, Graves articulou outra ideia que alcançou grande
aceitação entre os bruxos modernos: a de que os deuses – todos eles, de Jeová a
Júpiter, bem como a própria “Deusa” – extraem sua substância, vitalidade e
poder da fé neles depositada por seus fiéis. Quanto mais crentes possuir uma
deidade, quanto mais vigorosa a fé de seus seguidores, tanto mais forte, mais
poderosa e mais “real” se tornará essa mesma divindade. “Um dos argumentos
centrais contidos em A deusa branca é o de que tão logo um número significativo
de pessoas volte a crer nela de novo, seu reinado começará verdadeiramente.”
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A versão da história e da antropologia apresentada por Graves não é levada a
sério pelos historiadores e antropólogos. Suas teorias constituem um rearranjofantasioso de sua própria erudição excêntrica e expressam suas próprias
inclinações espirituais muito mais do que descrevem quaisquer realidades
históricas. Todavia, essas teorias tiveram um impacto notável. Como Michelet,
Leland e Murray antes dele, Graves combinou invenção literária, especulação
histórica, erudição defectiva (e até desastrosa) e convicção ideológica para
produzir uma obra que trouxe uma contribuição importante e detalhada para a
bruxaria moderna. Em conjunto, os quatro fundaram uma escola de
revisionismo histórico que se estabeleceu superficialmente, apesar de repetidas
refutações oficiais; coletivamente, eles são a fonte primária das ideias que
definem a bruxaria neopagã.
Michelet tomou as especulações de seus adversários retóricos e transformou-
as em sua própria contraespeculação, descrevendo a bruxaria como uma
sobrevivência do paganismo que se transformou em um bastião de luz e de
liberdade contra as trevas e a repressão da Igreja Católica Romana.
Leland construiu sua teoria sobre os alicerces de Michelet, retratando a
bruxaria como uma forma remanescente da adoração da Deusa, que fora
detalhadamente preservada e transmitida. Ele contribuiu com o termo
“Religião Antiga”, com uma ênfase sobre o feminino e com uma oposição mais
acendrada ao cristianismo, do mesmo modo que com um conteúdo ritualístico
específico nos feitiços que descreveu.
Murray enfatizou a ideia de que a “Antiga Religião” era realmente uma antiga
religião da fertilidade. Ela negou que a bruxaria tivesse surgido em oposição ao
cristianismo, afirmando, em vez disso, que era uma sobrevivência pagã que foi
desafiada pelo cristianismo. Foi também Murray que estabeleceu a
terminologia “Sabbat” e “Esbat”. Ela contribuiu com o conceito de que o culto
das bruxas era organizado em covens de treze pessoas, formado por doze bruxas
e seu líder, ou sacerdote.
Graves acrescentou um enfoque feminino ainda mais poderoso (ou
“ginocentrismo”) às teorias de seus três predecessores. Além de um viés
antipatriarcal generalizado, Graves contribuiu com o conceito específico de
uma “idade do ouro pré-patriarcal”, um tempo de paz, harmonia e adoração da
Deusa. Sua ênfase na conexão lunar levou-o a especular que o número treze
teria um significado especial, uma vez que existem treze meses lunares em um
ano solar, mais um dia que sobra. Graves também introduziu a imageria da
“tríplice forma” da Deusa, que é amplamente empregada pelas bruxas
modernas; salientou o poder espiritual do feminino e propôs que os covens de
bruxas na Idade Média eram, na realidade, liderados por mulheres.Finalmente, ele sugeriu que os deuses e deusas das diversas religiões são
tornados reais e poderosos por meio da fé de seus crentes.

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