Entretanto, o homem que reuniu todas as peças e realmente fundou a religião
da bruxaria moderna foi Gerald B. Gardner, um inglês com uma visão do
mundo pouco convencional e interesses idiossincráticos. Retirando elementos
tanto de fontes literárias como de suas experiências pessoais, ele elaborou uma
versão da bruxaria que dominou o movimento moderno. Gardner viajou muito
e passou boa parte de sua vida adulta no Extremo Oriente. Trabalhou em uma
plantação de chá no Ceilão (hoje Sri Lanka) em sua juventude, mudou-se depois
para Bornéu e, finalmente, transferiu-se para a Malaya (hoje Malásia), onde
prosperou como seringalista. Gardner realizou pesquisas originais sobre a
cultura malaia primitiva e até mesmo recebeu reconhecimento acadêmico por
sua obra, quando alguns de seus artigos foram publicados pela Royal Asiatic
Society. Ainda mais tarde, tornou-se inspetor alfandegário do governo
britânico e viveu durante algum tempo na Índia, ocasião em que estudou o
hinduísmo tântrico, entre outras doutrinas. Gardner permaneceu como
funcionário da administração civil britânica até sua aposentadoria e retorno à
Inglaterra, em 1936.
O tempo que Gardner passou na Ásia lhe conferiu amplas oportunidades para
satisfazer sua fascinação pelo exótico, pelo excêntrico e pelo esotérico.
Aparentemente, aderiu ao nudismo no princípio de sua vida, e mergulhava com
entusiasmo nos aspectos incomuns e ocultistas de qualquer cultura dentro da
qual vivesse.
Antes de seu envolvimento com Wicca, ele se havia tornado membro da Ordem dos Sufis e
igualmente um co-maçom. Também se havia familiarizado com o hinduísmo (particularmente
com a adoração a Kali), fruto de sua residência na Índia e na Malásia no período do serviço civil
administrativo britânico. Além de tudo, manteve correspondência com Charles Leland, autor de
Aradia, o evangelho das bruxas.
18
Gardner também estava familiarizado com a obra de Murray, a quem
conheceu pessoalmente – ela chegou mesmo a escrever uma introdução para
seu livro Witchcraft today, publicado em 1954 [editado no Brasil com o título Abruxaria hoje]. Ele foi iniciado na Ordo Templi Orientis – OTO e travou
conhecimento com Aleister Crowley, o notório mago inglês, que chamava a si
mesmo de “A Grande Besta 666”. Em geral, é evidente que Gardner se
familiarizara profundamente com muitos sistemas do ocultismo e com muitas
religiões. Mas não causa surpresa, consideradas as circunstâncias, que sua
história de como “redescobriu” a feitiçaria seja objeto de questionamento ou de
total negação, mesmo por parte de alguns dos feiticeiros modernos.
Segundo o relato de Gardner, ele descobriu um coven remanescente da “Antiga
Religião” quase por acidente. Depois de retornar à Inglaterra, continuou a
manter seus interesses e associações com o ocultismo e envolveu-se com a
Crotona Fellowship [Irmandade de Crotona], uma organização esotérica fundada
pela filha de Annie Besant, uma luminar da teosofia. Entre os ocultistas e
excêntricos que orbitavam em torno da Irmandade, Gardner encontrou
algumas pessoas que julgou serem diferentes das outras e bem mais
interessantes, entre elas “Old Dorothy” Clutterbuck, que, de acordo com
Gardner, demonstrou ser a líder de um coven secreto, remanescente da “Antiga
Religião” e quem, em 1939, o iniciou naquilo que ela chamava “wicca”. Gardner
não podia escrever abertamente a respeito da “Arte” porque as velhas “leis
contra a bruxaria” ainda permaneciam em voga e ele estaria sujeito a
penalidades legais. Consequentemente, ele disfarçou sua obra como ficção e
publicou, em 1949, um “romance” intitulado High magic’s aid, sob o pseudônimo
de “Scire”. O livro era apresentado como “um romance histórico a respeito da
Arte e continha até mesmo dois rituais de iniciação, mas não trazia qualquer
referência à Deusa”.Gerald Gardner,conhecido como “o pai da bruxaria moderna”, trabalhando em seu Museu de Castletown, no Moinho das Bruxas, Ilha de
Man, em 1962.
As leis contra a bruxaria foram revogadas em 1951, principalmente devido aos
esforços políticos das sociedades espiritualistas. Livre para reconhecer suas
legítimas filiações, Gardner publicou dois livros sob seu próprio nome, que são
geralmente considerados os textos fundamentais da moderna bruxaria
religiosa: A bruxaria hoje (1954) e The meaning of witchcraft (1959) [publicado no
Brasil com o título O significado da bruxaria]. Em A bruxaria hoje, Gardner
desenvolveu uma versão em que apresentava a si mesmo como um Indiana
Jones folclórico – um explorador intrépido que se havia deparado com um dos
últimos enclaves remanescentes da antiga religião pagã, que havia sido iniciado
em seus segredos e que agora trazia as novas de sua existência e de suas crenças
ao mundo exterior. Gardner já estava familiarizado com os trabalhos de Murray
e apresentava sua “descoberta” como uma validação da premissa dela, de queuma parte do paganismo havia sobrevivido na forma de bruxaria. Infelizmente,
a bruxaria que ele descrevia era tão diferente da versão por ela apresentada que
dificilmente poderia ser o mesmo fenômeno – um fato que ela
convenientemente omitiu em sua compassiva introdução ao livro de Gardner.
A versão da Arte, conforme era apresentada por Gardner, mostrava-se muito diferente daquela
descrita por Murray. Para ele, a Bruxaria era uma religião da natureza, pacífica e alegre. As bruxas
se reuniam em covens liderados por uma sacerdotisa. Veneravam duas divindades principais: o
Deus das Florestas e daquilo que se encontra além delas e a grande Deusa Tríplice da fertilidade e
do renascimento. Elas se reuniam nuas, ao redor de um círculo com 2,7 metros de diâmetro, e
emanavam poder de seus corpos por meio de danças, cantos e técnicas de meditação. Seu enfoque
principal era a Deusa; celebravam os oito antigos festivais pagãos da Europa e buscavam
sintonizar-se com a natureza.
20
O estilo de bruxaria apresentado por Gardner dominou o crescimento
subsequente do movimento da bruxaria moderna. A difusão e a evolução da
“Wicca Gardneriana” aconteceram rapidamente – uma história breve mas
complexa, que examinaremos com maiores detalhes no Capítulo 10. Basta dizer
neste ponto que Gardner foi carismaticamente eficiente em recrutar conversos
para sua tese, e que alguns deles o ajudaram a difundir a sua versão da Arte
além das Ilhas Britânicas, tanto na Europa como nos Estados Unidos. O resto,
como se costuma dizer, é história.
Mas, e o começo da história? O relato de Gardner sobre sua própria iniciação é
digno de crédito ou se trata simplesmente de um trabalho de imaginação
baseado em experiências pessoais e em sua erudição? E uma segunda questão é
inseparável da primeira: haveria ainda na Inglaterra, em 1939, um coven de
“bruxas” remanescente, que fosse de fato a sobrevivência de ensinamentos
muito mais antigos? Ou será que Gardner encontrou alguma outra coisa, que
ele então enfeitou? Ou ele não encontrou coisa alguma e inventou a história
inteira? Essa é uma questão de muita importância para os bruxos modernos.
Mesmo que muitos já tenham renunciado à pretensão de serem herdeiros de
uma antiga tradição pagã, eles realmente possuem uma história única, que
serve também como base para sua própria tradição em evolução. Infelizmente,
as primeiras partes dessa história demonstraram-se frustradoramente difíceis
de definir. E a comprovada tendência de Gardner a exagerar, a embelezar e a
desorientar acrescenta uma nova camada de incertezas à sua história.
Houve quem tentasse demonstrar que havia um grupo preexistente de
“bruxos” pagãos remanescentes na área de New Forest, o qual poderia ter
iniciado Gardner, conforme este alegou, mas as propostas apresentadasoscilam entre o inverossímil e o indemonstrável. Parece mais provável (embora
igualmente difícil de provar) que Gardner tenha encontrado em New Forest um
grupo que tentava recriar alguma forma de “paganismo” com base nas leituras
que seus membros faziam da literatura moderna.
É possível que, no final da década de 1930 e no princípio da década de 1940, membros da
Irmandade de Crotona já realizassem rituais firmados na Co-Maçonaria... e inspirados pelos
escritos de Margaret Murray, e que este tenha sido o grupo ao qual Gardner se referiu como o
Coven de New Forest”.
21
Foi neste cenário que Gardner retirou sua inspiração, bem como sua
iniciação, do grupo de New Forest, prosseguindo então para finalmente
alcançar o sucesso naquilo que antes era somente uma tentativa.
Em geral, fica claro que a Wicca de Gardner é uma montagem que recorreu a
uma variedade de fontes, algumas destas pessoais e subjetivas. Permanece
obscuro até que ponto o sistema de Gardner está baseado (ou inclui) qualquer
coisa que seja genuinamente antiga. Doreen Valiente, uma das primeiras
associadas de Gardner e membro de seu coven durante muitos anos, remonta as
fontes da Wicca de Gardner “às obras de Margaret Murray, Charles Godfrey
Leland, Rudyard Kipling e Aleister Crowley, além da ‘Chave de Salomão’ e dos
rituais da Maçonaria”. Não obstante, ela continua a acreditar que houve um
coven real sobre o qual Gardner construiu seu sistema, principalmente porque
ela discerne uma estrutura básica e subjacente “que não é proveniente de
Crowley, de Margaret Murray nem de qualquer outra das fontes
mencionadas”.
22
Outro desdobramento dessa discussão foi o trabalho de Aidan Kelly, autor que
oscilou entre o catolicismo e a bruxaria. Kelly foi criado como católico, mas
nutriu uma fascinação pela bruxaria e pelo paganismo durante seus anos
escolares. Foi um interesse que ele desenvolveu com seriedade crescente no
ensino médio e na universidade; por volta de 1971, ele se havia tornado um
“bruxo” praticante e assumido. De 1974 a 1980, estudou “As Origens do
Cristianismo” na Universidade de Berkeley, na Califórnia; em 1977, retornou ao
catolicismo, a religião de sua juventude. Dez anos depois, abandonou a Igreja
Católica pela segunda vez e voltou-se ativamente para a Arte de novo. Valendo-
se das ferramentas da crítica textual que ele havia adquirido na universidade,
Kelly tentou desvendar o que havia de verdadeiro na versão da Wicca
apresentada por Gardner. Ele começou analisando um manuscritoencadernado em couro, escrito a próprio punho por Gardner, que o intitulara
“Ye Bok of ye Art Magical”. Este trabalho havia sido descoberto atrás de um
arquivo no escritório de Gardner e revelou ser a primeira versão do livro que
seria finalmente publicado sob o nome de The book of shadows. O texto continha
vários feitiços e rituais, além dos comentários de Gardner sobre eles, sendo, em
geral, considerado uma fonte básica para o estudo da bruxaria gardneriana. A
investigação de Kelly, intitulada Crafting the art of magic, publicada em 1991,
correlaciona os vários componentes do “Ye Bok” com o que ele considera serem
suas fontes prováveis.
No final de sua análise textual, a principal conclusão de Kelly foi a de que
nenhuma “Wicca tradicional” havia sobrevivido e que tampouco existira um
coven anterior a 1939 – em outras palavras, a Wicca foi essencialmente inventada
por Gardner. Todavia, além de sua avaliação da história wiccana, Kelly
apresenta uma argumentação mais importante a respeito do significado da
própria história. Ele diz que a origem recente da Wicca e seu status de invenção
erudita são irrelevantes e não constituem em absoluto o que realmente importa.
Para Kelly, muitas das grandes religiões mundiais foram essencialmente
“inventadas” por seus fundadores, que se demonstravam tipicamente relutantes
em admitir este fato. Em vez disso, eles tentavam apresentar suas inovações
religiosas como prolongamentos dentro das tradições estabelecidas. Neste
contexto, Kelly descreve Gardner como um gênio criador que obteve sucesso ao
formular a cosmovisão para uma religião do futuro.
O revisionismo de Kelly acendeu a centelha de um debate acalorado dentro da
comunidade dos bruxos. Os gardnerianos tradicionais vieram em defesa de
Gardner, afirmando que sua história é não somente plausível como sustentada
por evidências merecedoras de crédito em seus pontos-chave. Eles igualmente
questionaram a pesquisa de Kelly e a tese que ele fundamentou a partir dela.
Uma extensa crítica das fontes, dos métodos e das conclusões de Kelly, escrita
por D. Hudson Frew e Anna Korn, foi publicada na revista Gnosis.
23 Frew
endossou “entusiasticamente” a ideia de Kelly de que a historicidade não é em si
importante; mas ainda assim defende a historicidade das alegações de Gardner
porque acredita que existem evidências que as apoiam. Frew resume a situação
dos estudos históricos gardnerianos:
Quando muitas pessoas falam a respeito da história da Arte, sua atitude é: “Para que tanta
especulação se temos tão pouco material com que trabalhar?” Mas no que se refere à bruxaria
gardneriana, isto simplesmente não é verdadeiro. Entre as diferentes versões do Book of shadows,
os cadernos particulares de Gardner sobre magia e a correspondência entre as pessoas que seenvolveram com a criação do movimento em meados do século XX, temos milhares de páginas de
documentos... Se existe algum problema, é que dispomos de tanto material que é difícil examinar
tudo. As pessoas têm essa ideia de que bruxaria é mera especulação solta ao vento. Mas é
precisamente o oposto.

VOCÊ ESTÁ LENDO
História da Bruxaria
Non-Fiction(EM REVISÃO ORTOGRÁFICA) ATENÇÃO! ESSE LIVRO NÃO FOI ESCRITO POR MIM o nome da escritor(a) é Jeffrey B. Russell aceito críticas construtivas! qualquer discurso de ódio ou ofensa a minorias serão excluído e o usuário será bloqueado! boa leitura ♥︎ at...