OS JULGAMENTOS DE SALEM

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São essas algumas noções macrocósmicas das origens sociais da bruxaria.

No microcosmo, os julgamentos de Salem são um exemplo bem documentado dos mecanismos sociais da bruxaria em nível local. O estudo sobre Salem, realizado
por Boyer e Nissenbaum, trata corretamente a história da bruxaria em Massachusetts no contexto de outros movimentos sociais na colônia.

O comportamento das garotas que se declaravam vítimas de bruxaria não eradessemelhante da conduta observada durante o renascimento religioso na Northampton colonial, em 1734-35.

“Com uma leve mudança na mistura de ingredientes sociais, [Salem e Boston] podiam ter promovido episódios de questionamento religioso em 1692”, em vez de cenas de bruxaria.

Tanto no renascimento religioso quanto na bruxaria, o cenário foi dominado por jovens que acabaram se libertando de seu papel social geralmente subserviente e
condescendente.

Em ambos os casos, os pastores exploraram o comportamento
bizarro das jovens no intuito de reforçar sua própria e instável liderança.

Por que, então, um caso produziu bruxaria e outro renovação religiosa?

Em primeiro lugar, a diferença em termos de preconceito intelectual, a
“interpretação que as lideranças de cada comunidade conferiram a estados físicos e mentais que, em si, eram de flagrante semelhança”.

Em Northampton, estados emocionais profundamente perturbados foram interpretados como visitação do Espírito Santo; em Salem, como uma investida de Satã.

Essa observação de Boyer e Nissenbaum confirma as proposições de Midelfort e Monter sobre a Europa: os desastres naturais e sociais não podem explicar por si só a incidência de bruxaria; as explicações mágicas conferidas
aos desastres é que levaram à incriminação das bruxas.

Uma história social apurada da bruxaria privilegiará a história dos conceitos e evitará correlações
simplistas entre fenômenos externos e crenças em bruxaria.

Boyer e Nissenbaum assinalam a importância da geografia local nos
julgamentos de Salem.

Enquanto a maior parte dos acusadores vivia na zona oeste da vila, a maioria dos acusados e aqueles que os apoiavam viviam na zona leste.

A ambiguidade do status legal da vila de Salem (em contraste com a cidade de Salem) tinha causado disputas políticas e ressentimentos.

O principal foco de descontentamento era James Bayley, o primeiro pastor designado para a vila (1679).

Bayley era um indivíduo controverso, e a discussão centrada nele ampliou-se até envolver toda a questão do governo da igreja, em particular o debate sobre quem tinha o direito de admitir e afastar pastores.

O que tornou tão destrutivas essas disputas em torno da igreja da vila de Salem foi o fato de sua constituição estar tão mal definida que a comunidade, não dispondo de
instrumentos estruturados para lidar com os conflitos, preferiu recorrer à
injúria.

Essa situação, peculiar à vila pelo menos em certo grau, pode explicar o porquê de a perseguição ter sido aí mais poderosa do que em qualquer outro lugar.

As disputas constitucionais que acompanharam a queda do rei Jaime II em 1688-89 também contribuíram para o enfraquecimento da autoridade dos governos britânico e colonial, assim como provocaram a dissensão política na vila.

Além disso, o relacionamento político entre vila e cidade de Salem era mal definido.

A vila ressentia-se tanto de sua dependência da cidade quanto da
incompetência da cidade em exercer sua autoridade para manter a
tranquilidade.

Em 1689, no auge da crise constitucional em Londres, foi nomeado um novo pastor, Samuel Parris.

A vila dividiu-se rapidamente entre aliados e adversários dele.

Essa luta foi exacerbada ao adquirir contornos morais, como era típico da sociedade puritana.

Os puritanos eram incapazes de perceber o conflito como meramente pessoal, ou político, ou econômico, ou até constitucional.

Viram-no como um “conflito mortal envolvendo a própria natureza da
comunidade”.

Boyer e Nissenbaum observam que “o episódio da bruxaria não causou as divisões na vila nem as modificou de maneira essencial, mas revelou a
intensidade com que elas eram vivenciadas e agravou seu caráter
retaliativo”.

Assim, o surto de bruxaria foi a expressão violenta de divisões
profundamente arraigadas, as divisões morais geradas pela discordância em torno do governo da igreja, e a discordância em torno do governo da igreja exacerbada por problemas de família e de vizinhança intensamente arraigados.

A hostilidade teria se manifestado de um modo ou de outro, mas a existência da tradição de bruxaria fez desta um veículo natural para todos esses rancores.

Os problemas da família Putnam ilustram o processo.

A mãe faleceu e o pai voltou a casar.

Os filhos do primeiro matrimônio passaram a nutrir profundo
rancor pela madrasta e pelo filho dela.

Projetaram, então, sua amargura sobre outras pessoas política ou psicologicamente menos ameaçadoras para eles,
especialmente mulheres mais vulneráveis da mesma geração da madrasta.

A família apoiava o ministério de Samuel Parris e conformava o ressentimento dispensado aos inimigos do pastor à irritação que a madrasta lhes causava.

Aqueles a quem identificavam com a madrasta eram também identificados como adversários de Parris; os adversários de Parris eram moralmente censuráveis; as mulheres velhas eram, portanto, parte de uma conspiração
tenebrosa contra Parris.

Tais ideias eram encorajadas pelo próprio Parris. “Ele aproveitou os temores persistentes e os impulsos
conflitantes de sua audiência e entrelaçou-os em um modelo irresistível, um drama universal em que Cristo e Satã, Céu e Inferno,
lutam pela supremacia.”

Os inimigos pessoais transformaram-se em inimigos
da comunidade, e os inimigos da comunidade em servos de Satã.

Dada a existência da tradição de bruxaria, eram grandes as possibilidades de que essas tensões se convertessem em caça às bruxas.

Então, entre 1690 e 1692 uma série de circunstâncias imprevisíveis conjugou-se como causa imediata da deflagração dos acontecimentos.

Samuel Parris tinha uma escrava procedente das Índias Ocidentais, mergulhada em saberes e tradições mágicas; algumas adolescentes, aparentadas com Parris ou ligadas à sua facção política, começaram a se interessar por adivinhações e ocultismo; a disputa da família
Putnam atingiu um ponto crítico; a fragilidade política e constitucional do governo limitava severamente sua capacidade para controlar a situação na vila de Salem.

Os aliados do pastor acolheram as acusações fantásticas das jovens
histéricas como confirmação daquilo de que já suspeitavam: seus adversários eram maléficos; eram servos diligentes de Satã.

Os oponentes de Parris foram
transformados em bruxos e bruxas, e poderiam ser agora torturados e
enforcados.

Como observou Trevor-Roper a respeito da caça às bruxas em geral, assim que um “grande medo” se apodera da sociedade, “essa sociedade naturalmente volta
seus olhares para o estereótipo do inimigo em seu meio; e uma vez que a bruxa se converteu em um clichê social, a bruxaria seria elevada à condição de acusação universal”.

Felizmente, Salem foi o último julgamento importante de bruxas no mundo de língua inglesa, e mesmo no continente europeu a perseguição começara a declinar a partir de 1700.

O julgamento de George Jacobs, Salem, 1692, mostrando a atmosfera histérica da sala do tribunal.

Jacobs foi enforcado em virtude do
testemunho de sua neta, Margaret Jacobs, que maistarde admitiria serem falsas as suas acusações.


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