9. O STATUS LEGAL DA FEITIÇARIA

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Todas as sobrevivências da crença, do culto e da prática pagãos foram condenadas como demoníacas e gradualmente suprimidas pela teologia e pelo direito cristãos.

O direito romano fora severo no tratamento da feitiçaria.
O direito teutônico era muito mais moderado.

Mas no decorrer dos séculos VIII e IX,a crescente influência da teologia sobre o direito civil produziu a associação legal das feiticeiras com demônios.

A palavra latina maleficium, originalmente o "ato de fazer mal a alguém", passou a significar especialmente a feitiçaria malévola,e presumia-se que o maleficus ou a malefica estava intimamente
relacionado com o Diabo.

Assim, a feitiçaria podia ser agora perseguida não somente como um crime contra a sociedade,mas também como heresia e um crime contra Deus.

A lei fixou a identificação do paganismo com a demonolatria.

Uma "Lista de Superstições" redigida no Concílio de Leptinnes, em 744, proibiu o sacrifício aos santos, evidência da persistente confusão entre o novo santo e a antiga deidade no espírito popular.

O mesmo concílio aprovou uma fórmula batismal quepedia ao catecúmeno que "renunciasse a todas as obras do demônio e a suas palavras,a Thor, Odin e Saxnot e a todos os seres malignos que são semelhantes
a eles".

Carlos Magno ordenou a morte de quem sacrificasse "um ser humano ao Diabo e [oferecesse] sacrifício a demônios,como é o costume dos pagãos".

A lei ajudou a transferir as características dos espíritos maléficos para as bruxas humanas.

Os pagãos tinham adotado o costume de ofertar comida e bebida aos espíritos menores.

O Sínodo de Roma, em 743, presumiu que esses espíritos fossem demônios e colocou as oferendas à margem da lei.

Os espíritos demoníacos foram então transformados em bonae mulieres,as espectrais "boas mulheres" que vagavam de noite e entravam nas casas para roubar comida.

Finalmente, as bonae mulieres foram convertidas em bruxas.

Do mesmo modo,o termo striga o ustria, originalmente um espírito noturno bebedor de sangue,passou a ser uma palavra comum para designar uma bruxa.

A Alta Idade Média foi tolerante com a feitiçaria e a heresia, se comparada às torturas e execuções do Império Romano e aos enforcamentos e autos de fé da Baixa Idade Média e da Renascença.

Penitência de dois ou três anos era normal para maleficium, bruxaria e idolatria.

Mas a lei foi ficando gradualmente mais abrangente e mais severa.

O Sínodo de Paris,em 6 de junho de 829, promulgou um decreto com implicações sinistras para o futuro, citando as passagens intolerantes do Levítico
(20, 6) e do Êxodo (22, 18).

O sínodo argumentou que,como a Bíblia decretou que a um maleficus não devia ser permitido viver, o rei
tinha o direito de punir severamente as feiticeiras.

Na Inglaterra, Alfredo o
Grande ameaçou wiccan com a pena de morte, e Etelstan ordenou a execução por wiccecraeft, se esta resultasse em morte.

Tais medidas estavam fadadas a reduzir e finalmente erradicar as práticas pagãs, e as condenações de ritos pagãos tornaram-se gradualmente repetições perfunctórias de condenações anteriores, decretadas quando o problema era mais sério.

Uma vez por outra, as fontes revelam alguma novidade, como no caso da luta de São Barbato contra o paganismo residual dos lombardos no século IX.

Em Benevento, esses pagãos adoravam uma serpente e uma árvore sagrada, em torno da qual dançavam num círculo.

O Sínodo de Roma, em 826,
queixou-se de que "muita gente, sobretudo mulheres, acordam à igreja nos domingos e dias santificados não para assistir à missa, mas para dançar, entoar canções indecentes e fazer outras coisas próprias de pagãos".

O mais importante documento legal da Alta Idade Média relacionado com a bruxaria é o Canon Episcopi, divulgado por volta de 900.

O cânone diz:Algumas mulheres pecaminosas são pervertidas pelo Diabo e desencaminhadas por ilusões e fantasias induzidas por demônios, pelo que acreditam que cavalgam à noite em animais na companhia de Diana, a deusa pagã, e de uma horda de mulheres.

Acreditam que no silêncio da noite percorrem distâncias enormes.

Dizem obedecer às ordens de Diana e, em certas noites, são convocadas para servi-la [...] Muitas outras pessoas também acreditam ser isso verdade, embora seja um erro pagão crer na existência de qualquer outra divindade além do Deus uno [...]

Tais fantasias são introduzidas nas mentes de pessoas sem fé, não por Deus, mas pelo Diabo.

Pois Satã tem o poder de transformar-se na figura de um anjo de luz.

Nessa forma, ele captura e escraviza o espírito de uma infeliz mulher e transforma-se em várias pessoas diferentes.

Mostra ao espírito perturbado dessa mulher coisas estranhas e pessoas desconhecidas, e o conduz em fantásticas
jornadas.

Tudo isso acontece somente no espírito, mas pessoas sem fé acreditam que tais coisas
aconteçam também no corpo.

O Canon Episcopi exerceu enorme influência.

Acreditou-se geral e
incorretamente que remontasse ao século IV, e por isso, resguardado pela autoridade advinda de sua antiguidade, ingressou nas principais coleções medievais do direito canônico.

Uma vez que rechaçava a realidade física da bruxaria e condenava aqueles que nisso acreditassem como hesitantes em sua fé, o cânone ajudou a retardar a caça às bruxas.

Mais tarde, quando os juristas canônicos e os teólogos aceitaram a realidade da bruxaria, tiveram de engendrar rodeios e cirnculóquios para não desmentir o cânone.

Entretanto, o Canon Episcopi está muito longe de ser um monumento ao ceticismo medieval, pois indica que a crença nesses estranhos fenômenos estava bastante
disseminada, e sua influência ajudou a propagá-los ainda mais.

O próprio Canon Episcopi contribuiu para a definição do conceito histórico do sabá.

Como chefe de uma horda demoníaca, Diana foi equiparada a Satã.

As mulheres que a seguiam deviam ser, portanto, adoradoras do Diabo.

Embora elas não a seguissem realmente com seus corpos físicos, cavalgavam com ela em espírito, uma vez que seus espíritos eram servos de Satã.

Obedeciam mais à Senhora
deusa (domina) do que ao Senhor Cristo (dominus), e reuniam-se secretamente
em noites determinadas para render-lhe culto.

Um século depois, o jurista
canônico Burchard de Worms, autor do Decretum, de 1012, equiparou a Diana do cânone dos bispos com Holda, a quem chamou "a bruxa Holda".

A deusa clássica Diana tinha sido assim identificada com a teutônica mãe-deusa Holda, e ambas consideradas manifestações de Satã.

A identificação ambivalente de
Holda como bruxa, aliada à cena das mulheres que a acompanhavam à noite,
criou uma imagem na qual posteriormente a caça às bruxas se apoiaria de
forma extensiva.



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