Capítulo 23: Aviso

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Algo parecia estar errado no navio aquela noite. Algo além do nevoeiro, que os mantinha ancorados no meio do mar. Era uma sensação ruim, algo sem muita explicação lógica ou racional, mas era inquietante. Não havia sequer um tripulante à bordo que estivesse calmo ou tranquilo, até mesmo os que dormiam estavam inquietos, como se seus corpos os dissessem que algo ruim estava para acontecer. E talvez não fosse apenas uma sensação, já que aquele tripulante de cabelos brancos parecia conversar com a névoa enquanto se sentava na beirada do navio com as pernas para fora. Seu semblante não demonstrava seu estado de espírito, mas ele parecia se divertir... Não fossem as lágrimas que molhavam seu rosto e faziam seus olhos de um azul gelado ficarem rodeados por um tom avermelhado. 

Undin realmente conversava com a névoa, ou melhor, com o devorador de espíritos¹ que se fazia presente na névoa e tinha que lidar com ele. Era uma criatura amorfa, porém tinha o dom de se transformar naquilo que a criatura por ele caçada mais apreciava e queria proteger, desde que isso fosse algo vivo. Mas com Undin era diferente. Nada mais que estivesse vivo fazia seu coração sequer tremer ou errar as batidas, já que quase não batia mais para nada além de bombear o sangue maldito por suas veias amaldiçoadas e fazer sua existência eterna e cruel não ser nada mais que um pesadelo sem fim de mortes sem sentido e injustas. Ninguém mais que respirava realmente o importava de verdade, e Sari era quem se aproximava mais de ser alguém importante para ele, mas mesmo assim, não era essa a forma que o devorador de espíritos tomava. Tinha que ser a forma dela, ou sequer teria alguma chance de caçar sua presa.

— Por quê tinha que ser justo ela? 

— Não existe nada mais que prenda você a este mundo além da lembrança dela, Legado. Tinha que ser ela, ou você não me daria ouvidos. 

— E o que um devorador iria querer comigo, além de devorar algo que nem sei se existe mais...

— Sentimos o movimento das peças... Não mexa com isso, Undin.

— Ah... Como dói ouvir isso na voz da Ka'ri... 

O devorador, agora com a forma da pessoa a quem Undin uma vez tentou compartilhar a sua imortalidade, enxugava as lágrimas no rosto dele. Era uma dor indescritível que existia naquelas lágrimas carregadas de saudade e culpa, era tão doloroso que até mesmo o devorador conseguia sentir um pouco de pena. Diferente de todas as almas que os devoradores carregavam, a dos Legados não podia ser carregada por eles, já que eram imortais. O que também lhes dava emoções fortes que nenhum mortal conseguiria suportar sem pensar em suicídio. 

— Por favor, Undin... Pare com esse seu plano. Tente viver de novo e quem sabe você não vê algo no mundo que te faria minimamente feliz?

Isso arrancava outro sorriso de Undin, mais um sorriso triste que vinha do fundo do abismo que era a alma daquele homem.

— Já vivi o suficiente pra ver que nada vai conseguir me fazer feliz. Ela não renasceu em nenhum lugar. Já olhei até no fundo dos oceanos e vulcões, mas a alma dela simplesmente não voltou. Acho que os seus "deuses" perceberam que a melhor criação deles retornou e não precisava mais voltar. Vá embora, devorador.

— Você não é minha caça, Undin. Não ainda. Se você não parar com esse seu plano, não será só eu pra te ferir. Seremos uma legião. E arrancar a sua alma desse corpo vai ser tão prazeroso que você só vai poder gritar e gemer de dor. 

— Certo. Faça seu trabalho. Mas não me fale essas coisas com a voz dela... Ela nunca ameaçaria ninguém, nenhuma criatura. Era o ser mais extraordinário do mundo. 

A névoa se dissipava enquanto passava por Undin e terminava de cobrir o navio. Ele apenas ficava encarando as sombras se movendo na água enquanto o devorador fazia seu trabalho e uma das vidas naquele navio se apagava. Era um trabalho silencioso e ninguém tinha o poder para impedir ou controlar, independente até mesmo de como tentasse fugir, quando se torna alvo de um devorador de espíritos, não há escapatória. Mas eles nunca conseguiam afetar os Legados e acabavam desistindo com o passar do tempo. Esse era o terceiro que aparecia para Undin e conversava com ele, talvez até fosse o mesmo de todas as vezes, ninguém saberia dizer. 

— Ka'ri... Como você conseguia ver a luz mesmo com toda a escuridão que te cercava?

Uma última lágrima caía de seus olhos e tocava o oceano antes da névoa se dissipar por completo e os ânimos de todos no navio se acalmarem, todos exceto aquele que teve sua alma devorada. Não havia descanso quando era um devorador a tomar sua alma. Undin sorria ao pensar que talvez sua alma já tenha sido devorada e agora está vivo apenas por alguma piada sem graça do destino. Desde que ela se foi, não sentia mais nada além de dor, raiva, culpa, saudade e desalento. E era isso que o movia ao seu objetivo atual. O último objetivo a ser conquistado antes do fim. 

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¹- Devoradores de Espíritos: Criaturas ligadas à morte, devoradores de espíritos assumem a forma daquilo que sua caça mais ama. São predadores inteligentes que prezam a caçada acima de tudo, trazendo uma morte intranquila e cruel para sua presa, devorando o espírito e deixando para trás um corpo vazio com apenas dois furos no peito. Dizem que o espírito devorado sofre eternamente dentro do devorador até pagar por todos os pecados que cometeu em vida. 

Herança de Sangue, Parte 2Onde histórias criam vida. Descubra agora