Capítulo 19: Passos Solitários

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Parecia até que haviam se passado meses, mas a fina camada de neve naquela montanha apenas lhe dizia que o inverno havia chegado há poucos dias, ainda assim, seus passos continuavam pesados e sem rumo. O rastro de todos havia sumido. Não conseguia sentir o cheiro do senhor Connor, da senhora Cristine, ou do seu irmão. Mal conseguia encontrar comida e por isso estava ficando magro e sentia suas forças diminuindo. O seu pelo e nem as roupas que estava usando conseguiam amenizar direito as presas gélidas do vento que soprava ora suave, ora forte. Algumas árvores tinham pequenas estalactites balançadas pelo vento, fazendo sons suaves e ao mesmo tempo perigosos, era quase como uma ameaça reconfortante para Rey, que olhava lentamente para os lados pensando ter ouvido algo ou alguém, apenas para perceber ainda mais a sua solidão. 

O máximo que conseguiu arranjar de comida naquele dia foram algumas nozes, cenouras e ameixas, mas tudo muito pouco e não parecia estar tão bom. As ameixas estavam começando a ficar moles, as nozes estava começando a criar mofo e as cenouras estavam praticamente mortas, mas era o que tinha para comer junto com uma fatia de pão mofado que tinha sobrado do que tinha levado. Com muita dificuldade, também tinha conseguido pegar alguns gravetos e galhos, que deixava próximo do fogo para secarem e alimentarem a fogueira onde ia esquentar água para cozinhar as cenouras com um resto de ervas para temperar e também para fazer um chá. Mas, naquela noite, até o fogo parecia estar com frio. A chama tremulava a cada lufada de vento e o chão úmido da gruta estava começando a gelar ainda mais. Muito em breve, não poderia mais ficar ali. Ele olhava para as mochilas no canto da gruta e se perguntava se o que ele fez realmente tinha ajudado ou se tinha piorado as coisas, mas não importa qual desculpa se passasse em sua mente, nada o fazia parar de se culpar. Rey ficava um pouco mais perto do fogo para se aquecer e via a sombra de sua segunda cauda se movendo e passava a mão nela... Era algo estranho, macio e difícil de se acostumar. Ele já conseguia mover as duas individualmente, mas preferia deixá-las o mais junto possível para parecer que eram uma única cauda muito felpuda. Já tinha ouvido histórias pelo seu irmão de que alguns Experimentos nasciam com deformidades ou adquiriam elas naturalmente com o passar do tempo, que isso os tornava raros e qual ricaço que não ia querer algo raro empalhado, pendurado ou transformado em um acessório? Isso o deixava com muito medo e até mexeu nas coisas da senhora Cristine pra ver se ela tinha aquelas coisas de cabelo pra juntar as duas caudas, mas não tinha... Ela sempre deixava o cabelo solto e raramente o amarrava. Nas coisas do senhor Connor também não tinha, mas valia a pena olhar. Ele suspirava profundamente e abraçava as próprias pernas, olhando as mochilas e pensando em algum jeito de se manter pelo inverno até adormecer sentado perto do fogo.

Quando acordou, a gruta estava parcialmente congelada e conseguia ouvir um barulho vindo do lado de fora. Pareciam passos, pesados demais pra ser alguém que conhecia, leves e desajeitados demais pra ser algum soldado, desiguais demais pra ser alguém com força suficiente pra lhe acorrentar de novo. Uma sombra começava a aparecer na entrada da gruta e tinha forma humana, o que não ajudava muito a ganhar confiança já que era raro humanos andarem sem seus bandos, mas toda essa construção de pensamento se quebrava quando uma figura curvada e de cabelos faltando no topo da cabeça escorregava e batia a cabeça na entrada da gruta. Rey conseguia sentir o cheiro de sangue e se aproximava devagar, curioso para ver melhor a pessoa que estava ali, claramente sozinho. O pequeno experimento, ainda com cuidado, começava a arrastar o homem para dentro da gruta e aproximar ele do fogo para aquecê-lo e começar a cuidar da ferida em sua cabeça. Depois disso, o jovem começava a arrumar as coisas e colocava tudo das três mochilas em apenas uma com muita calma e organização para não deixar nada para trás, nem mesmo as mochilas vazias, mas decidiu que ia esperar o homem acordar antes de deixá-lo ali. Era um homem estranho, um tanto diferente dos que já havia visto na sua curta vida, seu nariz parecia uma beterraba de tão vermelho e inchado, sua pele estava enrugada e com marcas profundas, mas não eram cicatrizes. Na boca aberta dele dava pra contar exatamente nove dentes aleatórios e amarelados, usava uma roupa que mais parecia um vestido amarrado com uma corda na cintura e tinha os pés descalços, mas o que mais chamava atenção eram suas mãos e braços cheios de cicatrizes, marcas antigas de queimaduras e calos. Claramente era um trabalhador, ou um escravo. Era também pequeno, muito pequeno, pouco maior que o jovem. Ele carregava uma pequena bolsa cinza de couro batido com aparência muito velha. Ele olhava de novo para o rosto do homem caído e pensava se o que tinha naquela cara era velhice. Nunca havia visto um humano velho, então não sabia como eles eram ou como agiam ou como se pareciam. 

Herança de Sangue, Parte 2Onde histórias criam vida. Descubra agora